REVISTA FACTO
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Mai-Jun 2010 • ANO IV • ISSN 2623-1177
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//Matérias

Por que a decisão do Viagra é boa para a sociedade brasileira?

Patentes Pipeline
A regulação da proteção patentária ganhou novas dimensões com o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (Acordo Trips, em inglês Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights).  Este instrumento posicionou a propriedade intelectual na esfera do comércio internacional e harmonizou, em níveis surpreendentes, a proteção dos direitos de propriedade intelectual, com consequentes impactos na vida sócio-econômica dos Estados-membros, notadamente nos sistemas de saúde pública de países em desenvolvimento.  O desejo de expansão das possibilidades de obtenção de monopólios patentários foi vitorioso e países com frágil ou mediana capacidade tecnológica ainda estão em processo de adaptação a um jogo de forças profundamente desigual. 
Hoje, países em desenvolvimento têm de gerenciar um conjunto expressivo de demandas geradas pelo Acordo Trips e outro conjunto de demandas em expansão, de caráter Trips plus.  É o caso das patentes de segundo uso, polimorfos e outras formas triviais.  No Brasil, tratam desta matéria a decisão do Camex-Grupo Interministerial da Propriedade Intelectual, de dezembro de 2008; o Projeto de Lei nº 3.995, de 2008, de autoria dos Deputados Paulo Teixeira (PT-SP) e Dr. Rosinha (PT-PR) e o Projeto de Lei nº 2.511, de 2007, do Deputado Fernando Coruja (PPS-SC), que geraram substitutivo proposto pela Deputada Rita Câmara (PSDB-ES).  Estas medidas, em consonância com os objetivos mais elevados da política de saúde pública brasileira, repudiam a concessão de patentes para o reaproveitamento de substâncias já patenteadas ou em domínio público, e contribuem para que sejam protegidas apenas invenções que realmente preencham os requisitos de patenteabilidade, em harmonia com os princípios do Acordo Trips e da Lei de Propriedade Industrial (LPI, Lei n° 9.279, de 1996).
Outra disposição Trips plus é a proteção pipeline.  Uma vez que o Código da Propriedade Industrial (Lei n° 5.772, de 1971) não permitia a proteção de medicamentos, incorporou-se um mecanismo na LPI, de 1996, para abrigar as patentes farmacêuticas de modo imediato, sem exame de mérito, em clara violação à Constituição Federal e ao texto da Lei, que exige o cumprimento de requisitos, como a novidade, para o alcance da proteção patentária.
Este monopólio generoso removeu da esfera pública conteúdos essenciais para o sistema de saúde pública, além de golpear os princípios da livre concorrência e da ordem econômica, sem criar qualquer obrigação em termos de fabricação local ou internalização das atividades de pesquisa e desenvolvimento no Brasil.

Antecedentes do Caso da Patente do Viagra no Brasil
O prazo de vigência de várias patentes pipeline e a correspondência do prazo da patente brasileira com o prazo do pedido original ou com pedidos subsequentes ao pedido original têm sido objetos de contestação judicial no Brasil.  O interesse geral das empresas titulares é a obtenção da prorrogação do prazo da patente e o reconhecimento de depósitos posteriores ao depósito original para cômputo da vigência do monopólio.
O medicamento Viagra, utilizado para o tratamento da disfunção erétil, é um segundo uso do citrato de sildenafila, substância que exerce efeito em casos de angina e hipertensão. O primeiro depósito da patente do Viagra foi realizado na Inglaterra, em junho de 1990.  Portanto, seria natural que a patente pipeline brasileira correspondente a este pedido expirasse em 2010.  Entretanto, houve tentativas para se prorrogar este monopólio.
Na Justiça brasileira, a empresa multinacional Pfizer, titular da patente, obteve decisão favorável ao seu argumento em primeira e segunda instâncias.  A empresa afirmou que o pedido original inglês, depositado em 1990, não havia sido finalizado e novo pedido no Escritório Europeu de Patentes havia sido depositado em junho de 1991. Em face destes fatos, a titular alegou que teria direito à exclusividade gerada pela patente pipeline brasileira até junho de 2011, não obstante esta contagem fosse incompatível com a data de depósito do pedido inglês.  Além disso, pelo princípio da independência das patentes, da Convenção de Paris, o suposto abandono do pedido na Inglaterra e a definição de uma estratégia de proteção no âmbito europeu não poderiam condicionar a redefinição do prazo brasileiro.
O recurso ao Superior Tribunal de Justiça (STF) foi resultado de interposição pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que havia decidido pela manutenção da vigência da patente até o dia 7 de junho de 2011.  Assim, gerou-se nova rodada de discussões sobre o prazo da patente brasileira.
Em 28 de abril de 2010, na esfera da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o julgamento do recurso especial referente ao prazo da patente chegou a um desenlace feliz para a coletividade.  Por cinco votos a um, em acompanhamento ao voto do relator do caso, ministro João Otávio de Noronha, o STJ assentou o entendimento sobre a contagem de tempo da patente pipeline, cujo pedido original inglês foi declarado abandonado pela empresa.  Em conformidade com o Acordo Trips, o Direito brasileiro adota como marco inicial da contagem de prazo o primeiro depósito, quando o titular passa a gozar do direito de preterir terceiros.  Assim, é indiferente se a patente estrangeira teve ou não seu prazo prorrogado no país do depósito original.  Os vinte anos de vigência começam a ser contados a partir da data do primeiro depósito.
Com a decisão do STJ, a patente pipeline brasileira expirará em junho de 2010.  Após esta data, a invenção estará em domínio público, livre para que qualquer laboratório comercialize o medicamento.  Aliás, nunca deveria ter saído deste território.  Nesse contexto, vale ressaltar que a Procuradoria Geral da República propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade Federal (ADI nº 4.234), em vias de ser apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, que questiona a concessão de patentes pipeline sem o atendimento dos requisitos indispensáveis para o deferimento de tal proteção.
Tem-se, assim, um resultado pró-interesse público, fruto de uma longa batalha entre a União, o INPI e a Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos (Pró Genéricos), de um lado, e a Pfizer e Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), de outro.  As valiosas contribuições da sociedade civil, de várias empresas e de outros segmentos do Governo (Executivo e Legislativo) para um desfecho justo não podem ser esquecidas.

Efeitos da Decisão em Outras Decisões sobre Patentes Pipeline
Diversos medicamentos para variadas doenças (câncer, hipertensão, HIV-Aids etc) estão protegidos por patentes pipeline e sob questionamentos judiciais idênticos ao do caso em tela.  Por conseguinte, a decisão do STJ sobre a patente do Viagra irrigará positivamente as outras decisões sobre patentes pipelines de medicamentos essenciais à população, colocando em domínio público outras moléculas e facilitando o acesso dos brasileiros a novas terapias.
Vale esclarecer que não se trata de uma quebra de patentes, como muitos pregaram.  A patente não teve sua vida interrompida por um mecanismo de exceção.  A patente do Viagra expirará de acordo com a intenção original do legislador e com os elementos fornecidos pela empresa no ato do depósito da patente no Brasil.  Nunca é demais lembrar que a patente é um direito temporário e não eterno, como muitos sonham. 

Benefícios para a Sociedade Brasileira
O estabelecimento de monopólios por meio de artifícios para a prorrogação do prazo das patentes prejudica toda a população, uma vez que faz manter os preços elevados e impede a expansão da concorrência.  É conveniente elucidar que, enquanto um medicamento está sob proteção patentária, produtores de genéricos ficam impedidos de comercializar o produto.  Logo, faz-se necessária uma intensa mobilização de toda a sociedade para que o interesse público prevaleça e que outras situações abusivas não venham a se constituir no Brasil.
O desfecho deste caso traz alívio aos defensores de um sistema de patente mais equilibrado e harmônico com as políticas de acesso a medicamentos.  O combate local aos abusos e às medidas Trips plus alinha-se à política externa brasileira, que trabalha para o fortalecimento da multilateralidade e da visão humanitária nas negociações que envolvem direitos de propriedade intelectual.
No plano internacional, o Governo do Brasil tem desempenhado papel memorável na luta pelo equilíbrio dos direitos e interesses, por meio da promoção de várias iniciativas, tais como a Declaração sobre o Acordo Trips e a Saúde Pública (2001), a Agenda do Desenvolvimento da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (2007) e a Resolução sobre Estratégia Global e Plano de Ação para Saúde Pública, Inovação e Propriedade Intelectual da Organização Mundial da Saúde (2008).  Na esfera doméstica, a decisão do STJ é um ato de cidadania, minimizando erros do passado recente.  Trata-se de uma posição coerente com a Lei, com a agenda da Saúde e os objetivos de estímulo à concorrência em prol de intensas atividades tecnológicas e do crescimento industrial brasileiro.  Não há desenvolvimento sem liberdade.

Claudia Inês Chamas
Claudia Inês Chamas
Pesquisadora do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fiocruz e professora do Programa de Mestrado e Doutorado em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em associação com a Fiocruz.
Vânia Lindoso
Vânia Lindoso
Procuradora federal da Advocacia Geral da União, na Fiocruz.
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