Poucas vozes na propriedade industrial têm sido ouvidas no sentido de corroborar com a atuação da ANVISA, no que tange à sua participação no processo concessório de patentes. Com exceção da própria agência reguladora, há uma unanimidade retumbante que diverge da interpretação do dispositivo, da sua auto-aplicabilidade, e da intervenção “drástica” atribuída àquela que, supostamente, “só deveria se manifestar quanto à saúde pública”.
Ousamos discordar.
Conforme a doutrina mais arrojada da propriedade industrial consigna, “todos os interessados têm o poder de manifestar-se perante um procedimento de patentes; mas a ANVISA, no tocante aos pedidos de patentes das áreas de sua competência, tem o dever legal de fazê-lo”.1
Essa obrigação da ANVISA deriva de um princípio constitucional olvidado por muitos, mas de homérica importância, o axioma do tratamento igualitário. Nesse sentido, Aristóteles já afirmara que “não sendo as pessoas iguais, não terão porções iguais”. 2
Se o setor farmacêutico (e agroquímico) afeta o interesse público primário de maneira diferenciada, nada mais lógico que perpasse por um procedimento diferenciado às demais espécies.
Um argumento falacioso que é corriqueiramente ouvido nos fóruns sobre o tema, é de que o INPI possuiria o “monopólio” na análise meritória dos direitos de propriedade industrial. Não parece que a Carta Magna assim o quis.
A distribuição de competências é feita para – dentro do movimento Estatal de descentralização – otimizar a atuação administrativa na batuta do axioma da eficiência. No entanto, o Supremo Tribunal Federal em caso recente reportou que um órgão pode deter, primariamente, o poder para o exercício de um dever constitucional, sem, no entanto, vedar a concorrência d’outro. 3
A atividade cooperativa do INPI com a Anvisa visa à maximização da cautela no momento de privar, por um longo tempo, toda a sociedade de uma determinada tecnologia e, dessa forma, atinge “uma atuação coordenada entre esta e o INPI, de modo a garantir melhores padrões técnicos no processo de decisão de patentes farmacêuticas”. 4
A vetusta ótica de que a patente era uma garantia do proprietário contra a “sociedade” está ultrapassada. Hoje “o direito se mostra em relação a outro para operar um juízo de inclusão e respeito”. 5
Não há maior “respeito” à sociedade do que a vinculação da causa e seu efeito, do sinalagma da contribuição privada para o avanço tecnológico e da sua contrapartida “privilegiada”.
Por sinal, os precedentes pretorianos não têm se distanciado de tais premissas, pois “uma interpretação correta do artigo 229-C nos leva à conclusão de que a anuência da Anvisa para a concessão de uma patente no âmbito farmacêutico deve corresponder à análise dos requisitos de patente, eis que a verificação de ser ou não produto e/ou processo de patente nocivo à saúde já se encontra prevista pela lei criadora da Anvisa. Entender ao contrário é tornar morta a letra da lei”. 6
Não obstante, a corrente que vislumbra esvaziar os efeitos do dispositivo viola o princípio da legalidade7, e, de fato “não se pode pretender retirar [da Anvisa] a competência que lhe foi atribuída por lei”. 8
Na ótica da vertente crítica à dupla análise meritória dos privilégios, o artigo 229-C da LPI serviria como um controle prévio das atividades sanitárias, como se estas bastassem ao crivo do direito de exclusiva.
Essa confusão entre patente e autorização sanitária é – por muitos – bem quista, e conhecida internacionalmente como linkage. Tal pretensão, inteiramente inconstitucional9, permitiria que ao prazo de exclusividade da patente fosse adicionado o lapso pela morosidade do órgão estatal em conceder a autorização de comercialização, sempre após a vigência da patente.
Já no foco da averbada “perda de poder” pelo INPI, as alegações sempre se consubstanciam em aspectos mais afeitos à vaidade, ao voluntarismo, do que à argumentação jurídica-democrática. Não são, factualmente, “razões” oponíveis à inteligência do ordenamento jurídico pátrio que visa o welfare social.
Para concluir, algumas questões muito mais polêmicas surgem do presente debate: Qual o dano causado quando apenas as patentes realmente robustas são deferidas, quando aquelas que não passariam pelo filtro constitucional de existência são rejeitadas? A quem não intere$$a esta anuência prévia?
Diante desta “insatisfação” generalizada devemos admitir que “apenas um setor” foi privilegiado: a cidadania brasileira.
1. BARBOSA, Denis Borges, A proibição, pela Anvisa, de reivindicações de uso farmacêutico (2004), em Usucapião de Patentes e Outros Estudos de Propriedade Industrial, Ed. Lumen Juris, 2006.
2. Aristóteles. Ética a Nicômaco. Tradução, textos adicionais e notas: Edson Bini. Editora Edipro. São Paulo, 2007, p. 152.
3. Supremo Tribunal Federal, Min. Celso de Mello, HC 89837/DF, DJ 20.10.2009: “A cláusula de exclusividade inscrita no art. 144, § 1º, inciso IV, da Constituição da República – que não inibe a atividade de investigação criminal do Ministério Público – tem por única finalidade conferir à Polícia Federal, dentre os diversos organismos policiais que compõem o aparato repressivo da União Federal (polícia federal, polícia rodoviária federal e polícia ferroviária federal), primazia investigatória na apuração dos crimes previstos no próprio texto da Lei Fundamental”.
4. Sentença na AO 2004.51.01.530033-2, 39ª Vara Federal, JF Flávia Heine Peixoto, DJ 04.07.2007. Ou, ainda, “de forma que a análise se faça mais criteriosa e técnica dos requisitos de patenteabilidade” in Tribunal Regional Federal da 2ª Região, 1ª Turma Especializada, AMS 200451015138541, JC Márcia Helena Nunes, DJ 31.07.2008.
5. FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Ed. Renovar, Rio de Janeiro; 2003, p.160.
6. Sentença na AO 2004.51.01.517054-0, 35ª Vara Federal, JF Daniela Pereira Madeira, DJ 10.12.2007.
7. “Se o juiz tivesse a possibilidade de julgar o caso concreto de acordo com a própria visão de mundo, subtraindo-se ao respeito ao Parlamento e ao Executivo, não existiria motivo para o primeiro, de fazer as leis, para o segundo, de emanar regulamentos ou outras disposições com força de lei”, in PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Editora Renovar; Rio de Janeiro, 2007, p.42.
8. Na íntegra: “Nunca é demais dizer que a própria Lei n° 9.279, de 14.5.1996, com a modificação trazida pela Lei n° 10.196/01, em seu art. 229-C, outorgou competência à Anvisa para previamente analisar os requisitos legais e anuir na patenteabilidade de produtos e processos farmacêuticos, o que não pode ser diferente no caso dos autos. Assim, não se pode pretender retirar desse órgão a competência que lhe foi atribuída por lei”. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 5ª Câmara de Direito Privado, Des. Silvério Ribeiro, AI 453.213-4/801, DJ 12.06.2006.
9. Por violar o princípio da livre concorrência, já afetado pela patente, incidiria contra o prisma da proporcionalidade.