Alguns dizem que foi De Gaulle quem primeiro disse que “as nações não têm amigos, têm interesses”. Outros dizem que o general apenas simplificou uma “boutade” célebre de Lord Palmerston. Seja de quem for a primazia, franceses ou ingleses, penso que nenhum país leva tanto a sério a defesa de seus interesses nacionais percebidos como os Estados Unidos da América, uma atitude que bem poderíamos copiar sem estar sujeitos a infringir quaisquer direitos de propriedade intelectual.
As relações internacionais são relações de poder, já se disse, e os EUA administram muito bem o seu poder na defesa de seus interesses, mesmo ao arrepio de tratados e convenções internacionais, mesmo ao arrepio de convicções que tentam vender mundo afora, como a da excelência dos mercados livres.
O caso do algodão é emblemático. Recorde-se que na Rodada Uruguay, cujo objetivo era a liberação do comércio internacional e o fim dos subsídios, os países ricos impingiram aos mais pobres a famosa “Cláusula da Paz” pela qual os subsídios agrícolas americanos e europeus seriam mantidos e não contestados até 2003, desde que mantidos nos níveis de 1993. Os americanos aumentaram os subsídios aos seus produtores de algodão, violando a cláusula que os favorecia, e o Brasil, cumprindo todas as formalidades legais, entrou com um protesto na Organização Mundial do Comércio – OMC. Entrou e ganhou, em todas as instâncias.
O trágico nesta história do algodão é que as principais vítimas são alguns dos países mais pobres do mundo. O Brasil foi prejudicado, é claro, mas o algodão para nós não tem o caráter essencial que tem, por exemplo, para o Mali, Burkina-Faso, Benin, Costa do Marfim, Camarões, Togo, Chade e Senegal, os quais têm uma produção relativamente pequena em termos mundiais, mas é nesta produção que repousa a esperança de desenvolvimento destes países, em que a maioria da população vive à beira da miséria. Mais de um terço do valor das exportações deste grupo de países é proveniente das vendas de fibra de algodão. Cerca de dez milhões de pequenos agricultores africanos dependem diretamente da cultura do algodão que é responsável por dois terços do valor de suas exportações agrícolas que usam para comprar alimentos.
O Brasil ganhou, mas até hoje não levou, o que mantém a situação de calamidade para todos os pequenos produtores africanos. Os EUA, neste como em outros casos, negaceia, recusa, protela o atendimento aos seus compromissos internacionais assumidos. Agora que o Brasil se prepara para exercer seu direito de retaliar e cogita de aplicar sanções cruzadas, tocando no nervo sensível dos direitos de propriedade industrial de empresas americanas, os EUA resolvem tentar mais uma negociação para evitar a retaliação, e enviam ao Brasil o Sr Ronald Kirk, seu principal negociador comercial que traz como estratégia de negociação a surrada fórmula da cenoura do porrete.
Para começo de conversa Kirk sugeriu que o Sistema Geral de Preferências – SGP, que dá tratamento tarifário preferencial a pouco mais de 15% exportações brasileiras para os EUA, não poderá ser prorrogado indefinidamente. Fica subtendido que o SGP para o Brasil, que termina no fim do ano, poderá não ser prorrogado pelo Congresso se o Brasil aplicar sanções no caso do algodão. Bem, ainda não se chegou ao ponto de sugerir a inclusão do Brasil na lista prioritária da Super 301, mas a sombra do porrete já é visível.
Agora, o lado da cenoura. Kirk disse que era do interesse dos EUA fortalecer as relações comerciais com o Brasil e que os americanos estariam dispostos a discutir novos e criativos instrumentos jurídicos para este fim, como acordos bilaterais de investimento e comércio. Até aí nada de novo ou criativo. Os EUA sempre que veem seus interesses contrariados nos fóruns multilaterais apelam para a estratégia de acordos bilaterais onde seu poder de pressão é maior. Através destes acordos fazem algumas concessões comerciais, como redução de tarifas e cotas de importação ampliadas para produtos de interesse de seus parceiros mas, em contrapartida, exigem cláusulas duras de proteção sobre investimentos, concorrência, transparência nas compras governamentais e facilitação do comércio, os chamados “Temas de Cingapura” sobre os quais não se chegou a consenso nas negociações da OMC. Tem sido assim nos mais de vinte acordos bilaterais que assinaram com diversos países, inclusive aqui na América do Sul, com Chile, Peru e mais recentemente Colômbia.
Cenoura murcha não dá negócio e fez muito bem o Itamaraty em, sem fechar as portas a qualquer negociação, reafirmar nossa posição de insistir no cumprimento das decisões da OMC.
Usar o peso de seu poder para obter vantagens em relações internacionais não é privilégio dos EUA, longe disso. Agora mesmo o Brasil se prepara para mais um contencioso na OMC, desta vez contra atitudes intempestivas e unilaterais da União Europeia em relação ao trânsito internacional de mercadorias, mais especificamente sobre o trânsito de medicamentos genéricos.
Os países europeus estão apreendendo em seus portos e aeroportos medicamentos provenientes da Índia e destinados a países em desenvolvimento sob a alegação de que os mesmos estariam violando direitos de propriedade industrial, medida que não tem guarida em nenhum tratado internacional de comércio. O precedente é grave, pois põe em risco, de um lado, a credibilidade dos acordos internacionais e, de outro, o atendimento à saúde de grandes contingentes populacionais.
O que esta por trás da atitude da UE são os interesses comerciais de suas grandes empresas de medicamentos que estão vendo o crescimento do comércio mundial de genéricos abocanhar uma fatia crescente de seus mercados. O fato de que este crescimento da comercialização de genéricos está colocando medicamentos essenciais ao alcance de mais pessoas, especialmente nos países mais pobres, não é levado em conta, como também não é levado em conta que os produtos apreendidos não estavam ferindo quaisquer direitos de propriedade industrial, seja no país produtor, seja no país comprador. O que importa é o sucesso na guerra pelo mercado, e aí vale tudo…, ou quase.
Por iniciativa de países da OCDE e sob o pretexto do combate à pirataria e à contrafação, vem sendo discutido, no âmbito da Organização Aduaneira Mundial – OMA, a criação de um novo acordo internacional, o Anti Counterfeiting Trade Agreement – ACTA. A proposta deste acordo é dar poderes às organizações aduaneiras de todos os países para impedir a circulação internacional de mercadorias suspeitas de estarem infringindo direitos de propriedade intelectual.
A iniciativa do ACTA pretende regulamentar o artigo 51 de TRIPS, mas excede de muito, as obrigações previstas naquele acordo. TRIPS obriga aos estados membros a tomar medidas de fronteira para coibir infrações a marcas e direitos autorais, mas apenas faculta aos membros tomarem medidas contra supostas infrações a outros direitos de propriedade intelectual. Na discussão deste assunto há uma aparentemente intencional confusão entre produtos falsificados e produtos que eventualmente poderiam estar infringindo um direito de propriedade intelectual. É de se registrar que os únicos conceitos internacionalmente aceitos são os de falsificação de marcas e infração de direitos de autor, os quais são explicitamente definidos em TRIPS.
A posição firme da diplomacia brasileira, e de outros países em desenvolvimento, trouxe à luz as negociações do ACTA, que vinham sendo feitas em suspeitoso sigilo, bloqueando o seu prosseguimento.
A abertura de um contencioso na OMC contra as medidas ilegais de apreensão de mercadorias em trânsito é medida que se impõe em defesa do livre comércio internacional e do multilateralismo.
É esta fidelidade ao multilateralismo e ao estrito cumprimento das obrigações dele decorrentes que tem assegurado o respeito ao Brasil nos foros internacionais e coroado o inegável sucesso da diplomacia brasileira.