REVISTA FACTO
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Set-Out 2009 • ANO IV • ISSN 2623-1177
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O retorno da confiança

Otimismo na indústria
No final de agosto, o diretor do Departamento do Complexo Industrial e Inovação em Saúde do Ministério da Saúde, Zich Moysés, apresentou, em evento promovido pela Abifina, o estágio atual da implantação do CIS. Entre as ações em andamento, destacam-se os investimentos na rede pública de laboratórios farmacêuticos de forma a prepará-los para a produção de medicamentos essenciais aos programas de saúde pública e para a nacionalização de produtos que, embora estratégicos, são supridos predominantemente por importações, tais como antirretrovirais e insulina.

Em decorrência desses investimentos, diversos laboratórios já estão trabalhando em parceria com o setor privado e a indústria fármaco-farmacêutica começa a se destacar nas estatísticas da produção industrial brasileira. No primeiro semestre deste ano, apesar da retração generalizada na indústria, o setor de medicamentos apresentou crescimento.

A situação ainda não é nada confortável, pois, paralelamente à recuperação da indústria local, o déficit comercial do País no setor farmacêutico continua perigosamente alto. As compras de medicamentos pesam cada vez mais no orçamento público. Nos últimos seis anos, as despesas do governo federal nessa área pularam de R$ 2,8 bilhões para R$ 6,8 bilhões, e nada indica que haverá uma mudança nesse viés em curto prazo. Mas as instituições e laboratórios públicos alinhados com o projeto do CIS estão confiantes na capacidade do País de recuperar o terreno perdido.

Carlos Gadelha, vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz, afirma que o modelo criado pelo ministro José Temporão sinaliza um novo caminho para o desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde no Brasil. Entusiasmado com o clima de cooperação entre governo e setor privado, ele afirma que “poucas instituições foram tão ativas junto ao governo quanto a Abifina no esforço para desenvolver o Complexo Industrial da Saúde. Isto foi fundamental para avançarmos, e logo implantaremos uma política que é decisão também da sociedade, não só do governo”.

A idéia da Fiocruz é atuar em toda a cadeia produtiva farmacêutica e, de forma mais ampla, em todo o Complexo Industrial da Saúde. Além da liderança que vem sendo exercida por Farmanguinhos no processo de nacionalização de medicamentos essenciais ao programa nacional de DST-Aids, o laboratório de produção de vacinas da Fiocruz, Bio-Manguinhos, também tem novos planos de ampliação da produção própria.

Bio-Manguinhos já fornece cinco das oito vacinas que compõem o calendário de vacinação infantil do Ministério da Saúde e, segundo seu diretor Artur Roberto Couto, a partir de 2010, graças a um acordo de transferência de tecnologia com a Glaxo SmithKline, passará a fornecer também a vacina contra Pneumococos. Além disso, há estudos clínicos em fase de conclusão visando à produção da vacina Pentavalente (DTP/Hepatite B + Hib), e estudos em fase intermediária para a vacina para Meningite B e Meningite C conjugadas.

Em nível estadual, o Instituto Vital Brazil (IVB) também tem sido um agente pró-ativo no processo de concretização do CIS. Sua intenção, segundo o presidente Antônio Werneck, é “disponibilizar produtos para o SUS, exportar o excedente da produção e transferir conhecimento científico com o incremento de pesquisas. Para isso, buscamos parcerias acadêmicas e com indústrias privadas, nacionais e internacionais”.

Na área de medicamentos, após licitação pública o IVB selecionou a Laborvida como parceiro privado produtivo e engajou no desenvolvimento de produtos o Laboratório de Farmacotecnia da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “A gestão do parceiro privado imprime maior agilidade aos processos produtivos e na constituição da rede de fornecedores nacionais dos insumos farmacêuticos ativos”, reconhece o presidente do IVB.

Há várias novas frentes de trabalho. O Instituto tem encomenda do Ministério da Saúde para entregar em 2010 o medicamento Rivastigmina e constituiu um pool de desenvolvimento para antirretrovirais. Em consonância com a IN 06/08 do Ministério da Saúde, fará realizar processos licitatórios para selecionar parceiros privados detentores de registros de produtos relevantes para atendimento aos programas de saúde pública, e já está negociando parcerias com diversas instituições públicas – Fundação para o Remédio Popular, Farmanguinhos, Fundação Ezequiel Dias e Marinha – para intercâmbio de tecnologia.

No setor privado, a expectativa é que a injeção de ânimo representada pelo projeto do CIS tenha efeitos de longo prazo. O presidente da Libbs, Alcebíades Athayde, declara-se otimista “com o novo olhar do governo para com o setor farmacêutico e farmoquímico, considerando-o uma área estratégia para o avanço tecnológico do País e também uma área de forte geração de riqueza”. A diretora da EMS, Telma Salles, acrescenta que “tanto o setor produtivo quanto o governo têm se mostrado empenhados em fortalecer o Complexo Industrial da Saúde, beneficiando a população com a garantia de maior acesso a importantes medicamentos e outros itens terapêuticos”. O diretor da Microbiológica, Jaime Rabi, comemora a re-edição do poder de compra do Estado como mecanismo para alavancar o desenvolvimento da fabricação nacional de Ingredientes Farmacêuticos Ativos (IFAs), e afirma: “melhor, impossível”.

Os laboratórios privados vislumbram no CIS a oportunidade de retomar um processo de verticalização da produção fármaco-farmacêutica nacional que se mostrou estrategicamente acertado algumas décadas atrás. Segundo Rabi, a Microbiológica, que inaugurou no País a fabricação nacional de nucleosídeos ARVs e desde seus primórdios investe na síntese química verticalizada em escala industrial, “nasceu como resultado de uma política industrial muito semelhante à que está sendo proposta agora pelo GECIS, como parte da nova Política de Desenvolvimento Produtivo”.

A Libbs, por sua vez, que sempre apostou na fabricação cativa de alguns IFAs para fabricar seus medicamentos, em 2010 completará trinta anos de atividade farmoquímica. O primeiro insumo fabricado internamente foi a Bromoprida, ingrediente ativo do Plamet, que ainda faz parte da linha de produtos da empresa. Segundo Athayde, a decisão de verticalizar a produção de alguns insumos necessários para a fabricação dos medicamentos “foi motivada, principalmente, pela preocupação com a qualidade, da síntese ao produto final. Acompanhar todo o processo produtivo dos medicamentos nos trouxe mais controle sobre cada etapa da produção”. Ele admite ser este um caminho difícil, “visto que nas últimas décadas grande parte do parque farmoquímico nacional foi desativado, mas acreditamos que nosso diferencial é justamente investir nas inovações e ter profundo conhecimento dos nossos produtos”.

Ao longo do tempo, a Libbs investiu em tecnologia, aprimoramento de processos e recursos humanos, além de gestão da qualidade, o que lhe rendeu a certificação europeia de Boas Práticas de Fabricação. Este certificado abriu espaço para o laboratório exportar Gestodeno, Tibolona e Desogestrel para o mercado europeu, e com ele a Libbs se credencia a fornecer esses insumos para quase todos os países do mundo. “Para nós, essa é uma confirmação de que nossos produtos atendem aos mais altos padrões de qualidade” – orgulha-se Athayde.

Na área de fitoterápicos também há novidades. Segundo Elzo Velani, diretor da Bionatus, a Política Nacional de Plantas Medicinais e Medicamentos Fitoterápicos, aprovada pelo Decreto nº 5.813, de junho de 2006, é “a primeira boa notícia para o nosso segmento em muitos anos de atividades. O governo brasileiro, entendendo que a população já faz uso de plantas medicinais e medicamentos fitoterápicos há muito tempo, decidiu finalmente regulamentar o setor”.

Poliana Silva, vice-presidente do Laboratório Simões, garante que o incentivo à produção nacional de fitoterápicos é uma diretriz comercialmente promissora para o Brasil. Isto porque “o uso de remédios à base de ervas cresceu 380% nos Estados Unidos nos últimos cinco anos, e na Alemanha 70% das pessoas declararam, em pesquisa recente, recorrer à ‘medicina natural’ como primeira escolha no tratamento de doenças menos graves ou pequenas disfunções. 25% dos fármacos empregados atualmente nos países industrializados advêm, direta ou indiretamente, de produtos naturais. Para países detentores de grande biodiversidade, como o Brasil, isto representa uma oportunidade de ingressar no bilionário mercado farmacêutico mundial”.

Outra vantagem do desenvolvimento dos fitoterápicos, segundo Poliana, é que “a opção de conduzir pesquisas a partir da indicação de plantas utilizadas por comunidades encurta o percurso do desenvolvimento de uma nova droga, já que os pesquisadores, antes mesmo de iniciarem os estudos científicos, dispõem de uma indicação de qual atividade biológica esta droga poderia apresentar”.

A vice-presidente do Simões acredita que a conjugação entre biodiversidade e capacitação tecnológica cria, no Brasil, uma sinergia entre desenvolvimento econômico, social e ambiental. “Com nosso amplo patrimônio genético e diversidade cultural, temos a oportunidade de estabelecer um modelo de desenvolvimento próprio e soberano na área de saúde, que prime pelo uso sustentável dos componentes da biodiversidade e respeite princípios éticos e compromissos internacionais assumidos, como a Convenção sobre Diversidade Biológica, promovendo assim a geração de riquezas com inclusão social”.
Entre os laboratórios públicos, o IVB é um dos que incluíram os fitoterápicos em seus planos de expansão. Como medidas preliminares, o Instituto sediou a reunião de técnicos da Associação de Laboratórios Farmacêuticos Oficiais do Brasil para a discussão deste assunto, e fechou parceria com o Laboratório Universitário Rodolpho Albino, da Universidade Federal Fluminense.

O desafio dos biofármacos

As novas rotas biotecnológicas de produção de princípios ativos constituem um dos maiores desafios para o futuro do setor farmacêutico nacional, especialmente no que tange ao aproveitamento da pesquisa científica nessa área pelos laboratórios industriais.

Segundo Roberto Debom, diretor de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação do Laboratório Cristália, embora a maioria das pesquisas em biotecnologia ainda seja realizada no meio acadêmico, já existem empresas privadas, principalmente as que atuam no ramo veterinário, com linhas de produtos comerciais obtidos por rotas biotecnológicas. No que tange à saúde humana, ele destaca o trabalho das unidades de produção de vacinas dos laboratórios públicos e a mobilização do setor privado para iniciar a produção nacional de proteínas terapêuticas nos próximos anos.

A infraestrutura brasileira para investimentos em biotecnologia farmacológica está em fase de montagem, na avaliação de Debom. “Laboratórios de pesquisa já em funcionamento darão suporte tecnológico para as empresas que desejam investir na construção de plantas produtivas”. Quanto às universidades, ele afirma que ainda são poucas as que têm condições de prestar serviços para o setor produtivo privado e que, para isto, serão necessários investimentos em infraestrutura e recursos humanos, bem como “visão empreendedora”. Em sua opinião, o que precisa ser melhorado “é o modelo de gestão das universidades e dos centros de pesquisa para favorecer sua interação com o setor produtivo, seja como parceiros ou como prestadores de serviços. Para obtermos sucesso, é preciso que as duas partes consigam se comunicar com agilidade e clareza”.

Apesar das dificuldades, o diretor do Cristália acredita que o processo avança, pois universidades e empresas estão se esforçando para caminhar na mesma direção no desenvolvimento da biofarmácia. “A Universidade vem modernizando seu pensamento e investindo na estruturação de seus laboratórios, suas agências de inovação e seus departamentos jurídicos. O estabelecimento de acordos contratuais entre as partes não pode ser um entrave para a parceria, mas sim uma garantia de que ambos irão usufruir dos benefícios gerados pela iniciativa conjunta” – assinala Debom.

Vanda Magalhães, gerente de Biotecnologia da Eurofarma, esclarece que os processos produtivos de biotecnologia são muito mais complexos que os de síntese química. São processos multidisciplinares que envolvem conhecimentos de biologia molecular, microbiologia, engenharia, purificação de proteínas, química e análise. Em sua avaliação, hoje existem poucos profissionais no Brasil capacitados em processos biotecnológicos industriais e, “no curto e no médio prazo, a indústria nacional da saúde irá enfrentar grandes desafios para se adaptar a esta nova rota, até porque, no longo prazo, o uso de processos biotecnológicos será obrigatório para garantir a competitividade da indústria nacional”.

Os laboratórios da Fiocruz e o Instituto Vital Brazil se mostram preocupados com a questão do domínio, pela indústria nacional, de rotas biotecnológicas para a produção de fármacos e medicamentos. Farmanguinhos tem nove projetos de biofármacos em andamento, sendo cinco de desenvolvimento com enfoque principal em proteínas terapêuticas e anticorpos monoclonais humanizados. Nesse segmento o laboratório mantém parcerias tecnológicas com duas instituições cubanas – o Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia e o Centro de Imunologia Molecular – para a incorporação da Alfaepoetina Humana Recombinante e da Alfainterferona 2b Humana Recombinante, substâncias já fornecidas ao Ministério da Saúde, e para o desenvolvimento conjunto do Interferon peguilado, que entrará em fase de estudo clínico no próximo ano. Para atender a esta nova linha, o laboratório está construindo o Centro Integrado de Protótipos, Biofármacos e Reativos para Diagnóstico Laboratorial, que deve iniciar suas operações em 2011.

O IVB implantou um setor de biomarcadores utilizando tecnologia de cultivo celular e está trabalhando no desenvolvimento tecnológico de biomarcadores para doenças crônicas. Reiterando a preocupação de Vanda Dolabela, Antônio Werneck reconhece que, nesses segmentos, “é necessária uma rede maior e mais complexa de parceiros do que nos empreendimentos produtivos de síntese química convencional”. Para contemplar o conjunto dessa cadeia, o IVB agregou como novos parceiros o Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ, na atividade de cultivo celular, e o Instituto Butantan, nos estudos proteômicos e genômicos.

Posteriormente agregou também a Hygeia, uma empresa incubada na UFRJ, para o desenvolvimento em escala de bancada dos medicamentos, que serão acreditados no Centro Nacional de Ressonância Magnética Nuclear da UFRJ.

Ainda na área de biotecnologia, o IVB firmou parceria com o Instituto Finlay, de Cuba, para a construção de monoclonais; e desenvolveu, em cooperação com a BTI Espanha, empresa incubada na Universidade de Barcelona, pioneiros kits diagnósticos com tecnologia para coleta e armazenagem em papel de filtro para screening populacional para doenças crônicas. Além disso, o Instituto participa atualmente, junto com a empresa norte-americana Chembio, de estudos para o desenvolvimento de um teste rápido para detecção da tuberculose.

O que falta fazer

Institucionalizar em todas as esferas de governo e assim garantir a permanência dos mecanismos de estímulo à implantação do CIS é, basicamente, o que falta para a indústria nacional se afirmar e para o País reverter o crescente déficit na balança comercial de fármacos e medicamentos.

Segundo o presidente da Libbs, “a política do atual governo, que priorizou a área de fármacos e medicamentos, é fundamental para a manutenção das poucas indústrias farmoquímicas em atividade no País e também para a expansão do setor. Consideramos que a isonomia regulatória e tributária, a utilização do poder de compra do Estado, a definição dos medicamentos estratégicos inseridos na Política Nacional de Medicamentos, o estabelecimento de parcerias público-privadas e o engajamento de todas as áreas do governo em prol do desenvolvimento do parque farmoquímico nacional sejam ações que favorecerão a ampliação e a diversificação do setor”.

Para Telma Salles, da EMS, a implantação do novo modelo depende, especialmente, da “finalização do diálogo sobre o tema entre governo e entidades/setores afins, de modo a se desenhar e esclarecer em definitivo o papel e o compromisso de cada parte envolvida. O amadurecimento das estratégias e a articulação de forças e interesses em torno do Complexo Industrial da Saúde também são importantes passos para o sucesso das metas traçadas”.

Entendendo que “o sistema nacional de produção e inovação em saúde só pode se fortalecer mediante uma bem articulada parceria do setor público com o setor privado”, Carlos Gadelha, da Fiocruz, propõe que se aprofunde e amplie esse modelo em um marco jurídico mais confortável, já que o Ministério da Saúde, de forma inovadora, “colocou a agenda industrial dentro da agenda da política da saúde”. Isto, que não acontecia há pelo menos 25 anos, “vem do reconhecimento do fato de que o País não pode ficar vulnerável, dependente, na fabricação de produtos com alto conteúdo tecnológico na área da saúde”.

Gadelha acredita que a Portaria nº 128 estimulará a fabricação de IFAs por outros laboratórios oficiais (além de Farmanguinhos), especialmente a partir do reforço da Portaria nº 3031, que estimula o estabelecimento de parcerias entre laboratórios públicos e o setor produtivo para a internalização da fabricação de produtos essenciais à saúde. Porém, como a maioria dos laboratórios públicos é estadual e apenas quatro são federais, o vice-presidente da Fiocruz reconhece que o avanço depende da adesão dos estados à política nacional de saúde. Em sua opinião, o caso de sucesso do Efavirenz representa uma contribuição para esse processo, pois deverá incentivar parcerias semelhantes em nível estadual.

Além de ser uma das mais importantes instituições farmacêuticas e de biotecnologia do País, a Fiocruz exerce papel fundamental na formulação de políticas de saúde e desenvolvimento social. Trata-se de uma instituição centenária que, nas palavras de Gadelha, “contribui para que políticas de governo se tornem políticas de Estado. Sem vinte ou trinta anos de políticas permanentes à frente, não mudaremos o quadro atual”. O que o governo fez até agora, afirma o vice-presidente da Fiocruz, foi plantar as sementes, mas será preciso dar o salto de qualidade – quantitativo e qualitativo – nos instrumentos e na implementação.
De acordo com Mario França, consultor do laboratório ABL, o que mais importa para serem efetivamente implantadas as parcerias público-privadas na área da saúde é que os projetos a serem desenvolvidos sejam relevantes e considerados prioritários dentro dos programas do Ministério da Saúde. Além disso, que sejam economicamente viáveis, o que pressupõe isonomia fiscal com o produto importado, e que atraiam e motivem o investimento das indústrias no desenvolvimento local dos produtos. “Se for assim – afirma França -, a ABL vai voltar a contribuir fortemente para o desenvolvimento da indústria farmoquímica nacional”.

Para Nicolau Lages, diretor da Nortec, o uso do poder de compra do Estado e a isonomia tributária em favor da produção nacional são elementos centrais da nova política da saúde que ainda carecem de consolidação. “Os programas governamentais de disponibilização de medicamentos não terão garantia de continuidade e, principalmente, de uma necessária ampliação, se não houver desenvolvimento tecnológico local que garanta o fornecimento de IFAs a custos baixos” – adverte o empresário. Quanto aos tributos que devem ser considerados para uma efetiva isonomia tributária em licitações públicas, segundo Lages isto depende de uma definição clara dos objetivos do Estado: se quer apenas estabelecer uma justa isonomia tributária com o produto importado ou se, além da isonomia, pretende criar estímulos para desenvolver o parque industrial local. “No primeiro caso, devem ser cotejadas as cargas tributárias totais do produto fabricado no País e do produto importado, computando inclusive os benefícios concedidos aos exportadores nos seus países de origem. No segundo caso, além da isonomia tributária, o Estado deve criar um mecanismo que propicie o desenvolvimento da produção local” – explica Lages.

O Gecis ainda não concluiu uma proposta de desoneração tributária para produtos farmacêuticos. Atualmente a carga é desnecessariamente elevada e muito desequilibrada, principalmente em função do ICMS. A incidência dos principais tributos sobre produtos farmacêuticos – ICMS, IPI, Imposto de Importação e PIS/Cofins – desde intermediários de síntese até medicamentos acabados, passando pelos fármacos, pode chegar a 31% sobre o preço de fábrica para produtos com 19% de ICMS e 12% de PIS/Cofins. No que se refere ao ICMS, os medicamentos têm incidência tributária mais alta do que os produtos da cesta básica e tão alta quanto a maioria dos produtos consumidos no País.

Na área de fitoterápicos os obstáculos a vencer também não são pequenos. Segundo Elzo Velani, para atingir seus objetivos a política nacional definida para esse segmento deve ser mais “pragmática, ou seja, investir na ação”. Ao Ministério da Saúde caberá atuar na definição das prioridades terapêuticas; ao da Educação, incluir disciplinas de plantas medicinais e medicamentos fitoterápicos na grade curricular dos cursos das áreas farmacêutica e médica; ao da Ciência e Tecnologia, aparelhar as universidades para que, em parceria com a indústria, desenvolvam novos insumos fitoterápicos; ao da Agricultura, fornecer capacitação para plantio, colheita e secagem de plantas medicinais; e ao da Comunicação, divulgar à população informações relacionadas aos medicamentos fitoterápicos.

Outras ações necessárias, no entender de Velani, são a definição de um percentual de compras de medicamentos fitoterápicos pelas secretarias de saúde para distribuição nas unidades básicas de saúde, a priorização da produção de medicamentos fitoterápicos fornecidos ao Governo pelos laboratórios privados nacionais, e o incentivo à prescrição de medicamentos fitoterápicos pelos médicos em geral, especialmente por aqueles que respondem pelo abastecimento das secretarias de saúde. Com estas medidas, ele acredita que o setor crescerá significativamente e poderá até contribuir para a redução do déficit da balança comercial no setor farmacêutico.

Na área de biotecnologia, entre os problemas que dependem da ação do governo destacam-se questões de regulamentação, tais como limites de patenteabilidade de produtos e processos biotecnológicos. Segundo Roberto Debom, embora o texto das diretrizes do INPI para exame de pedidos de patente nas áreas de biotecnologia e farmacêutica defina um pouco melhor o conteúdo da Lei de Patentes, é necessário intensificar as discussões e promover maior participação dos envolvidos no assunto, por exemplo através de consultas públicas. “Isso é muito importante porque, para as empresas do ramo, devido ao número relativamente pequeno de pedidos de patente na área de biotecnologia, ainda é difícil avaliar qual a tendência de interpretação dos examinadores brasileiros. Muitas vezes não temos condições de prever qual escopo de proteção será concedido a pedidos de patente em andamento, o que causa grande insegurança para a empresa interessada em desenvolver tecnologias ou produtos relacionados”.

A gerente de Biotecnologia da Eurofarma, Vanda Magalhães, conta que, há cerca de três anos, diversas empresas nacionais interessadas em biotecnologia juntaram-se para discutir os desafios que deveriam enfrentar e as possíveis soluções, e “um dos principais gargalos detectados foi a regulamentação específica. Nossa legislação estava voltada para a importação de princípios ativos biotecnológicos, mesmo porque não havia produção nacional”. Diante disso, o grupo se uniu a outro mais amplo, liderado pelo Ministério da Saúde e integrado também pela Anvisa, para estudar formas de desfazer esse gargalo. A partir daí procedeu-se à revisão da legislação nacional na área da biotecnologia, mas, segundo Vanda, “ainda há um longo caminho a percorrer na questão do marco regulatório”.

O diretor da Anvisa, Dirceu Barbano,  anunciou recentemente que ainda este ano serão publicadas três consultas públicas envolvendo o registro, pós-registro e testes (incluindo estabilidade) relativos aos produtos biológicos. Para se ter uma ideia da relevância desse assunto, dados do SUS indicam que os biofármacos, biomedicamentos e anticorpos monoclonais, apesar de responderem por apenas 2% do total de produtos para tratamentos terapêuticos (contra 98% de produtos sintéticos), são responsáveis por 41% dos desembolsos do SUS, contra 59% provenientes de produtos sintéticos.

A regulamentação dos biofármacos enfrenta um impasse. A RDC 315/05, que trata do Registro dos Produtos Biológicos Terminados, não inclui os conceitos de produto biossimilar e biogenérico, o que pode representar um entrave ao desenvolvimento do setor. A Anvisa tem recusado as definições utilizadas internacionalmente para essas categorias de produtos, por não haver ainda um consenso. Por outro lado, a definição de similar sintético existente no Brasil não pode ser estendida aos biossimilares, pois, diferentemente dos produtos obtidos por síntese química, o processo de obtenção do princípio ativo para os biofarmacêuticos é muito importante para o registro. Na área de biomedicamentos, o processo é o produto.

A definição de biossimilar ou biogenérico confronta os interesses dos detentores das patentes de produtos de base biotecnológica com os de fabricantes de medicamentos genéricos ou similares. Será preciso criar uma regulamentação específica para a produção dos biológicos similares, caso contrário não será possível garantir padrões mínimos de qualidade, segurança e eficácia. Ao que tudo indica, a Anvisa está aguardando uma definição mais clara do assunto em nível mundial para estabelecer suas regras.

Além da regulamentação, outros problemas que afetam o desenvolvimento nacional na área de biotecnologia estão relacionados à importação de insumos e equipamentos, à determinação de preços dos medicamentos inovadores e às políticas públicas para o setor. Um exemplo mencionado por Vanda Magalhães é o fato de o governo, ao mesmo tempo em que incentiva a iniciativa privada a produzir medicamentos biotecnológicos, sinalizar com produção própria dos mesmos medicamentos.

Uma questão que concerne diretamente às novas rotas biotecnológicas de produção de medicamentos, mas que também contempla as rotas de síntese química, é a de como a nova política da saúde pode articular o incentivo à produção local com o incentivo à inovação tecnológica. Jaime Rabi assinala que “é muito importante não confundir o uso do poder de compra do Estado com a transferência desse poder de compra para a iniciativa privada”, pois nesse caso as empresas seriam meros intermediadores, importando insumos muito avançados e não estratégicos, sem agregar valor para a sociedade. “A indústria farmoquímica é intensiva em tecnologia e a inovação nessa área é intensiva em conhecimento e ciência”, enfatiza o diretor da Microbiológica. “Para a atual política ter sucesso e incorporar a inteligência que temos disponível no Brasil na forma de recursos humanos altamente qualificados, é fundamental avaliar o conteúdo científico-tecnológico e a experiência dos proponentes dos projetos que o Estado classifica como de valor estratégico”.

De acordo com Rabi, uma contrapartida necessária ao poder de compra do Estado, por parte das empresas, seria a realização de investimentos em inovação e tecnologia que garantiriam autossustentabilidade, inclusive fora do âmbito do governo e do mercado nacional, possibilitando que a indústria nacional se exponha a mercados mais exigentes. As indústrias de IFAs terão necessariamente que se engajar em um processo de agregação de valor pelo conhecimento e tecnologia, afirma o empresário. E isto demandará maior interação com as universidades e centros de criação de conhecimento, além do desenvolvimento dentro das empresas de grupos de inovação de alto nível. “A política industrial precisa integrar formalmente o esforço produtivo com o esforço inovador”.

O diretor da Microbiológica sugere que, mais do que projetos, as empresas devem ser desafiadas com encomendas de produtos a serem fabricados num determinado período, com demonstração clara de agregação de valor no País, com rigorosa garantia da qualidade e com preços justos para a realidade do mercado brasileiro. “As empresas brasileiras protegidas e premiadas pelo poder de compra do Estado devem, em contrapartida, mostrar competitividade, baixos custos relativos, tecnologia e inovação como fatores de criação de futuro”.

Aludindo à experiência brasileira de industrialização nos anos 1970, Jaime Rabi afirma que a substituição de importações viabiliza a industrialização, mas “não necessariamente estimula a inovação, fonte de diferenciação e criação de futuro. A grande vulnerabilidade da indústria brasileira está na ‘commoditização’ da sua produção, isto é, na concentração em segmentos onde a competição é pelo menor preço, sem criação de valor agregado”.

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