Não é recente a idéia do “jeitinho brasileiro”. No âmbito judicial, a postergação dos débitos e o retardamento das derrotas inevitáveis sempre fizeram parte das estratégias jurídicas empresariais.
Contudo, especialmente no ramo patentário farmacêutico, nos últimos dez anos os estratagemas se intensificaram pelos autores das demandas de prorrogação de patentes. Tais pleitos, ora fundados numa hermenêutica sobre o Acordo TRIPS, ora calcados em leituras exóticas sobre o combatido instituto do pipeline1, tinham como premissa unívoca disputar um lapso temporal do qual não dispunham.
Se o INPI havia fixado o encerramento do privilégio para uma data, os titulares de patente ajuizavam – e ajuízam – demandas visando o enriquecimento de seu patrimônio por um, dois e, em casos esdrúxulos, até vinte e um anos2.
O êxito ou a sucumbência processual, no entanto, jamais foram o objetivo imediato de tais artimanhas, posto que na apreciação da petição inicial, todos os juízos determinam a citação da Autarquia Federal (INPI), bem como a notificação ao seu nome de domínio para que a patente correspondente conste como se estivesse sub judice.
Pronto, a vitória foi consolidada. Nenhuma outra decisão se faz necessária!
Com o trâmite normal de uma ação judicial, entre a citação do demandado e o trânsito em julgado, a decisão de mérito sobre a prorrogação do prazo visado pelos autores se dará em momento póstumo ao lapso temporal querido.
Nesse ínterim, eventuais concorrentes, cientificados pela informação sub judice aposta à tecnologia, ficaram ressabiados de investirem e jogarem o produto, processo, no mercado, tendo em vista a pertinente batalha judicial.
Conseqüentemente, toda sociedade fica privada dos benefícios trazidos pela competição, e o erário deixa de exercitar as licitações impostas pela Constituição e pela Lei 8.666/93.
Para majorar tamanha malícia, os processos desse gênero costumam ser ajuizados na véspera do domínio público3, trazendo enorme instabilidade aos atos administrativos, e ao mercado.
No entanto, pela primeira vez a Seção Judiciária Federal do Rio de Janeiro, em decisão de inédito conteúdo, multou tal prática pelo exercício da litigância de má-fé, nos termos do artigo 17, III, do Código de Processo Civil, pela utilização da medida processual como forma de se alcançar objetivo ilegal.
O precioso trecho extraído dos autos de nº 2008.51.01.817159-7, em trâmite perante a 37ª Vara Federal do Rio de Janeiro, merece registro: “forçoso é reconhecer que, ao ajuizar a presente ação no último dia de vigência da patente, a parte autora obteve, de fato, a extensão do prazo de seu monopólio por um ano, eis que dificilmente alguma outra empresa lançará o mesmo produto no mercado, sob a ameaça de infringir indevidamente a patente da autora. Considero, assim, que a empresa autora agiu como litigante de má-fé”.
Poderíamos ir além, ainda que o pleito de prorrogação fosse legítimo, retardá-lo ao último dia útil cabível implicaria no abuso do direito de seu titular4 .
Em outro feito, determinada multinacional ao se ver “sucumbente” no pedido de mérito, passou a interpor recursos evidentemente não cabíveis, de modo a ganhar “mais tempo”: “Constata-se, outrossim, que a embargante, na interposição dos presentes embargos de declaração, não age da forma como exigida pela legislação processual. Tenta, ao contrário, tumultuar o andamento do feito, trazendo os mesmos argumentos expostos em sua apelação, o que evidencia propósito meramente procrastinatório, a acarretar a correspondente penalidade”5.
Infelizmente, conforme exposto em outro rico precedente abaixo, o que deveria ser exceção passou a ser “regra”, e o costume ilegal se tornou comum: “A mim me parece que, em sede de propriedade intelectual, os causídicos decidiram opor embargos de declaração, como regra, a todo e qualquer acórdão proferido por este Tribunal. Daí se observar que mesmo os acórdãos mais íntegros estão sempre sendo embargados, via de regra com argumentos de mérito, como se a petição de embargos pudesse revolver, a bel prazer do peticionário, todas as razões do apelo novamente. Daí que no presente caso, a embargante parece ter “copiado” e “colado” suas razões de apelo na petição de embargos, sem nem atentar para o fato de que o acórdão se fundou em razões de direito outras que não foram aquelas alinhadas por ela em sua apelação, reiterando-as a pretexto de esclarecimento daquilo que já se encontra, desde o julgamento, suficientemente esclarecido. Tenho que esta Primeira Turma Especializada deve começar a penalizar esse tipo de conduta, com vistas a não prejudicar o andamento dos seus trabalhos, tendo em vista que o tempo que temos já é suficientemente exíguo para julgar até mesmo as causas que realmente necessitam de um provimento jurisdicional e ainda não o têm. Tudo isso considerado, a par do dever processual de as partes agirem com lealdade e não provocarem incidentes infundados, nego provimento aos presentes embargos e condeno a embargante ao pagamento de multa de 1% (um por cento) sobre o valor da causa atualizado, a teor do disposto no art. 18 do CPC”6.
Na certeza de que tais decisões são escassas, mesmo eventualmente penalizadas pelo judiciário, a irrisória multa sobre o valor da causa não se aproxima do montante percebido a título de uma exclusividade mercadológica – ilícita, mas – factual, obtida pelo ajuizamento do feito.
Se o Poder Judiciário parece estar mais atento ao uso abusivo das medidas processuais, os titulares de patente parecem ruminar um conhecido – e nada bemquisto – adágio popular: “o crime compensa”.
1. O artigo 230, da Lei 9.279/96, que constituiu a revalidação das patentes – já em domínio público – cujo objeto tinha a tutela expressamente negada pelo revogado Código da Propriedade Industrial, Lei 5.772/71, é hoje objeto de Ação Declaratória de Inconstitucionalidade ajuizada pelo Ministério Público Federal, e autuada no Supremo Tribunal Federal sob o nº 4.243. No que toca a questão da inconstitucionalidade patente, a doutrina alemã tem dedicado boas páginas à análise dos feitos: “Seria por certo imaginável em si colocar na base um outro conceito de arbítrio do que o do art. 3 BGG e concluir assim pela nulidade dos preceitos contraditórios. Isso levaria, no entanto o juiz a poder recusar obediência a uma norma que não atentasse contra a Constituição o que parece conciliável com a sua adstrição constitucional à lei e com o princípio da divisão de poderes, quando muito naqueles casos extremos de “injustiça legislativa”, expressos pela conhecida “fórmula de RADBRUCH”: o reconhecimento de um semelhante caso extremo não é, evidentemente, possível perante contradições de valores ligeiras, antes pressupondo “arbítrio evidente” ou em semelhante critério “extremo”, de tal modo que se chega assim ao mesmo resultado do artigo 3 GG. Aliás, trata-se aqui, particularmente a propósito da questão da desobediência legítima perante normas inconstitucionais, de um âmbito problemático próprio e altamente complexo, que não pode ser discutido no domínio deste trabalho”in, CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, 3ª Edição, tradução por CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes, p. 229.
2. Algumas ações judiciais questionando atos de indeferimento de patente depositadas em 1979, pleiteavam a aplicação do artigo 40, § único, da Lei 9.279/96. Sobre o tema, permita-nos remeter ao nosso texto: “O art. 40 da LPI como propulsor de uma patente perene”. Revista Facto – Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades, 9ª Edição, Setembro/Outubro 2007.
3. As demandas não costumam ser ajuizadas em momento posterior, posto que a jurisprudência hoje é pacífica no sentido de que: “Assistiria ao apelante o direito de ter o prazo de vigência de sua patente de invenção prorrogado, tendo em vista que esta ainda se encontrava em vigor quando da entrada em vigência da LPI. Contudo, o prazo originalmente deferido ao privilégio já havia escoado por completo antes mesmo da interposição da ação, não sendo mais possível reverter tal circunstância decadencial, que não se suspende, interrompe nem se prorroga”. Tribunal Regional Federal da 2ª Região, 2ª Turma Especializada, AC 2003.51.01.512296-6, Des. Liliane Roriz, decisão unânime, DJ 03.09.2007.
4. “A <> pode definir-se como o instituto pelo qual o direito que não seja exercido durante bastante tempo, não mais poderá ser actuado quando o seu exercício retardado seja contrário à boa fé. No Direito português, a <> é uma subcategoria do abuso do direito” “in, CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, 3ª Edição, tradução por CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e Menezes, p. 105.
5. Autos de nº 2005.51.01.519679-0, em trâmite perante a 1ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
6. Autos de nº 2006.51.01.537945-0, em trâmite perante a 1ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.