A redução da dependência do petróleo, a diminuição das dívidas externa e interna e as reservas cambiais fortes fizeram o Brasil ter mais fôlego para “encarar” a crise econômica mundial. É o que afirma o professor-doutor do departamento de Economia da PUC-SP e economista-chefe da Siemens Brasil, Antônio Corrêa Lacerda. Na entrevista a seguir ele diz que mesmo diante do atual cenário, o país tem potencial para transformar suas fraquezas em oportunidades. Mas para isso o economista alerta que deve-se inverter a essência da política econômica brasileira, reduzindo a taxa de juros, estimulando as operações de crédito, desonrando os impostos, ampliando os investimentos em infra-estrutura, criando vantagens competitivas e fomentando as exportações.
De que forma e em que alcance as medidas tomadas pelos governos em 2008, no mundo, vêm contribuindo para resolver, ou pelo menos atenuar os efeitos da crise?
Trata-se da maior crise após o grande crash de 1929 e a primeira crise mundial na fase da globalização. Isso torna o efeito contágio entre os vários mercados internacionais mais rápido. Em contrapartida, ao contrário do que ocorreu em 1929, os governos estão mais atentos, tomando medidas para amenizar a crise. Os pacotes de recapitalização dos bancos tendem a minimizar o impacto da crise financeira. Mas isso não vai impedir seus desdobramentos na economia real. A contratação do crédito e do financiamento provocará uma desaceleração do crescimento da economia global. O PIB mundial, que vinha crescendo cerca de 5% ao ano, no período 2002-2007, deverá apresentar uma diminuição de ritmo para 3,7% em 2008 e muito menos este ano.
Como se situa a reação das economias dos países emergentes nesse cenário?
Os países emergentes manterão em geral seu crescimento, embora em ritmo mais moderado. Também há muitas diferenças entre eles. O Brasil, por exemplo, está melhor preparado para enfrentar os efeitos da desaceleração global devido a estabilidade macroeconômica. Alguns aspectos são relevantes. A grande mudança estrutural veio da substancial diminuição da dependência do petróleo, devido a um razoavelmente bem sucedido programa de ampliação da produção de petróleo, assim como a mudança na matriz energética, com a incorporação do etanol e outras energias renováveis. Isso muda nossa condição frente ao mundo e no futuro será, ao contrário, um fator de desenvolvimento.
Nas contas externas brasileiras, também houve uma melhora expressiva, o que diminuiu nossa vulnerabilidade. O conforto de US$ 200 bilhões de reservas e a divida externa pública relativamente pequena representam defesas importantes. No lado fiscal, a dívida interna, além de ter sido reduzida também teve zerada a sua parcela de títulos cambiais, que sempre implicaram um ônus em períodos passados de instabilidade cambial.
Nossa economia é puxada pela demanda doméstica, o que é uma vantagem em tempos de crise global. Apesar das incertezas sobre os rumos dos mercados internacionais, no Brasil o volume de crédito/PIB é de apenas 40%, tendo muito espaço para crescer, agora com taxas de expansão mais sustentáveis.
O sistema bancário brasileiro é fortemente regulado e capitalizado, e os bancos estatais, como o BNDES, Banco do Brasil, e Caixa Econômica e outros são instrumentos que compensam parcialmente as restrições de crédito internacional.
Temos ainda demanda reprimida na infra-estrutura, principalmente nos setores de energia, transportes, saneamento básico, siderurgia e mineração. Para combater a crise será importante que o governo mantenha seu plano de investimentos nestes setores para atenuar os efeitos da crise e, adicionalmente estimulando os investimentos privados.
O Brasil vem adotando as medidas que se fazem necessárias nas áreas financeira, fiscal e de política industrial?
Há um claro descompasso entre o ritmo de deterioração das expectativas e o nível de atividades da economia brasileira, vis a vis o ritmo e profundidade das medidas de combate à crise. Isso tem feito com que “importemos” muito além do que seria previsto, o efeito da recessão dos países ricos. Apesar de o Brasil dispor de situação macroeconômica favoravelmente inédita para fazer frente ao novo cenário global, ao contrário do que ocorreu em outras crises, por outro lado não garante imunidade para enfrentar a crise.
O desempenho das economias locais dependerá principalmente das suas próprias ações anti-cíclicas, do grau de criatividade, ousadia e autonomia das suas políticas econômicas domésticas. Isso exige um conjunto de medidas de efeito coordenadas para reverter os impactos da crise. Nesse sentido, contraditoriamente, algumas das debilidades brasileiras são verdadeiras oportunidades, como o déficit habitacional, as carências de infra-estrutura, de saneamento, etc. Mas tudo isso não é automático. Para fazer da nossa relativa boa base macroeconômica e transformar as carências em oportunidades é preciso inverter o cerne das políticas econômicas.
O primeiro ponto é reduzir a taxa básica de juros, adaptando-a ao novo cenário mundial, radicalmente diferente do de três ou seis meses atrás. Isso implica ir além do gradualismo e reduzí-la o mais rápido e fortemente possível em, pelo menos, 2 a 3 pontos percentuais, para dar um choque positivo de expectativas e reduzir o custo de financiamento da dívida pública. Ao contrário do que poderia parecer, a manobra proposta implicaria baixíssimo risco. A queda dos preços das commodities e produtos em geral provocado pela queda generalizada da demanda permite e exige ousadia nesse ponto.
Também é preciso agir para reduzir o custo e estimular as operações de crédito com a redução dos spreads e taxas ao tomador final. Para isso há que se utilizar o poder dos bancos públicos, BNDES, Banco do Brasil e CEF para ampliar o crédito e financiamento em condições mais favoráveis e estimular a demanda, a produção e os investimentos.
O terceiro ponto é desonerar tributos para incentivar o nível de atividades e os investimentos produtivos. O argumento da “perda de arrecadação” decorrente de desonerações precisa ser revisto, porque com a recessão todos perdem, inclusive o governo, que terá queda brusca de arrecadação decorrente do baixo do nível de atividades e do aumento da inadimplência. Portanto, é mais sensato diminuir os encargos e viabilizar atividades para que se mantenha a arrecadação tributária mediante ao estímulo do consumo e da produção.
O quarto ponto importante é ampliar os investimentos públicos, no âmbito federal (PAC e outros), e estimular as esferas estaduais e municipais e as empresas estatais a também fazê-lo, para fomentar toda a cadeia produtiva envolvida e servir de parâmetro para os investimentos privados. Para isso é muito importante um verdadeiro mutirão para desobstruir entraves, inclusive pendências ambientais e legais, que estejam provocando postergações nos cronogramas dos projetos de grandes investimentos. Eles são balizadores e multiplicadores do investimento em toda a economia.
O quinto ponto é aprofundar a PDP (Política de Desenvolvimento Produtivo) para consolidar e mesmo criar novas vantagens competitivas setoriais, ampliando o grau de valor agregado local. Embora tenha sido uma boa iniciativa, a PDP precisa levar em conta o novo cenário global e brasileiro e ir mais fundo em todos os seus aspectos propostos. Dentre os objetivos é preciso estimular atividades geradoras de emprego e renda e, ao mesmo tempo, pouco demandadoras de importações. É o caso, entre outras, da infra-estrutura, construção civil e indústrias de “bens de salário”, como alimentícia, vestuário, calçadista, etc.
O sexto aspecto é fomentar as exportações, estimuladas pela desvalorização cambial. Apesar da retração da economia internacional, que vai acirrar a competitividade, é plenamente viável ampliar, mediante ações, o market share brasileiro de apenas 1,2% das exportações mundiais. Nesse sentido a desvalorização do real, proporcionalmente acima da dos nossos principais concorrentes internacionais, é uma aliada. É preciso ir além e vencer a tendência ao protecionismo dos demais países e estabelecer acordos comerciais pontuais que ampliem nossas chances nos mercados.
O sétimo, último, mas não menos importante, é rever as prioridades da política macroeconômica, tendo como foco o crescimento. É preciso ter em conta que o desafio mais urgente é combater a crise e seus efeitos. Isso implica romper paradigmas e que todos os atores da política econômica atuem coordenadamente, inclusive o Banco Central, além de articular pactos com a iniciativa privada e os trabalhadores.
O maior desafio é evitar que a economia real continue a “derreter”, como tudo indica que ocorreu no quarto trimestre de 2008 e vai ocorrer no primeiro trimestre de 2009. É preciso agir imediatamente para salvar o desempenho dos próximos trimestres e garantir uma taxa de crescimento minimamente positiva, de pelo menos 2,5% a 3% no ano para evitar o agravamento do desemprego e a queda da renda, que vinham sendo juntamente com o crescimento do crédito os fatores principais de expansão do mercado doméstico e de crescimento do PIB.
O novo governo norte-americano trará, efetivamente, melhores condições para resolver os problemas financeiros detectados e, ao mesmo tempo, promover a retomada do crescimento da economia?
Barack Obama já mostrou que tem condições e grande carisma. No entanto, não evitará a recessão de 2009 nos EUA, porque ela já está dada. O desafio dele é tornar as medidas imediatas para reverter esse quadro negativo o mais rapidamente possível. Ou seja, um cenário positivo possível seria o início de uma retomada em 2010.
E quanto à situação do câmbio, qual seria o valor razoável a se especular como patamar para se estabilizar ao longo de 2009?
Se a apreciação continuada do real, que prevaleceu em 2006, 2007 e até agosto de 2008, era prejudicial para o setor produtivo brasileiro, a volatilidade observada nos últimos três meses também não é favorável para a tomada de decisões. Sendo um dos principais preços da economia, uma certa previsibilidade do comportamento futuro da taxa de câmbio é um fator determinante para a formação de preços, decisões de investimentos e produção, além do seu papel para o comércio exterior (exportações e importações).
Um câmbio mais desvalorizado é importante para fomentar a geração de valor agregado local, especialmente para amenizar os impactos da crise de crédito pós 15 de setembro nas contas externas e, ao mesmo tempo, gerar atividade interna para compensar os efeitos da desaceleração global.
Muitos se preocupam com o efeito inflacionário da desvalorização do real e defendem uma atuação mais forte do Banco Central brasileiro no mercado cambial à vista. No entanto, principalmente levando em conta as condições do mercado internacional é preciso considerar alguns aspectos importantes:
a) O primeiro aspecto é que a desvalorização do real não é tão expressiva o quanto poderia, em um primeiro momento, parecer. Se tomarmos as taxas médias vigentes ao longo dos períodos, o quadro não é tão dramático. Melhor do que tomar a simples comparação entre a menor cotação, de R$ 1,55 no final de julho e os R$ 2,50 que tem vigorado nos últimos dias, é levar em conta o cambio médio efetivo ao longo do período. Ele tende a refletir mais a estrutura de preços relativos da economia por guardar maior relação com o fluxo de caixa das operações no mercado produtivo;
b) O câmbio médio vigente entre janeiro e agosto deste ano foi de R$ 1,67, com baixa volatilidade (variação). O de setembro a novembro passado foi de R$ 2,08, 25% mais elevado, porém com maior volatilidade. É provável que a média de dezembro e talvez dos próximos meses seja uns 10% mais elevada, ou seja, próxima de R$ 2,30, ainda com elevada volatilidade;
c) Como o pass through (repasse) médio é de 10%, isso significaria coeteris paribus ou seja, considerando-se as demais variáveis constantes, apenas para exercício, isso representaria potencialmente um impacto direto de 3,5 pontos percentuais (10% de 35%) na inflação;
d) No entanto, há que se considerar a deflação ocorrida nos preços em dólares das commodities no mercado internacional, que nos últimos três meses representou uma queda de 65% em média. Essa queda já está se refletindo nos indicadores de inflação doméstica, tanto pelo efeito direto da queda dos preços das commodities, quanto indireto, dos demais preços, o que também é estimulado pela demanda mais fraca;
e) Assim, voltando à taxa de cambio, se uma taxa real de equilíbrio estivesse digamos próxima de R$ 2,00 há dois meses, hoje ela pode ser mais alta, entre 10% e 15%, sem gerar uma pressão inflacionária acima do tolerável.
Portanto, considerando-se esses fatores, não é uma má opção a decisão do Banco Central do Brasil de preservar as reservas cambiais ao invés de queimá-las excessivamente para evitar a desvalorização do real.
Para efeito de comparação, enquanto o Brasil manteve até o momento praticamente intacto o seu nível de reservas, países emergentes como Rússia, Índia, Coréia do Sul e Cingapura já perderam cada um em média cerca de US$ 100 bilhões depois da crise. Todos os países citados possuíam um nível de reservas superior ao nosso e talvez possam se dar ao luxo de gasta-las agora. Também vale ressaltar que todos esses países também tiveram uma valorização menor das suas moedas nos últimos anos, ao contrário do real.
No caso brasileiro, a volatilidade do comportamento da taxa de câmbio também tem outras influências dadas pelos derivativos cambiais de empresas que apostaram na continuidade da valorização do real, as posições compradas em dólares no mercado futuro e a crise de crédito para comércio exterior. Todos esses efeitos tendem a ser passageiros, o que seria mais um fator favorável a atual estratégia do BCB.
Outro destaque importante é que o BCB, embora venha atuando apenas pontualmente no mercado cambial à vista, tem agido mais intensamente na oferta de swaps cambiais. No primeiro caso, representa venda direta de reservas, no segundo, a possibilidade de recompra, portanto mais adequada para preservar o saldo das reservas;
Assim, considerando-se custos e benefícios a questão mais determinante foi mesmo a excessiva valorização do real ocorrida nos três anos anteriores. O que está havendo agora é uma correção. Não valeria então a pena tentar reverter a desvalorização atual cometendo um outro erro de queimar desnecessariamente as reservas.
Isso, no entanto, não quer dizer que não há o que fazer, não apenas no aperfeiçoamento da política cambial, mas também no âmbito da política monetária, que tem grande influência no mercado, em uma acepção mais ampla. Nesse sentido, reduzir as taxas básicas de juros (Selic), estimular a diminuição dos spreads dos bancos comerciais, fomentar a liquidez e induzir a fluidez do crédito e financiamento seriam fatores muito importantes diante do quadro atual.