Em julho de 1971 foi criada a Central de Medicamentos (CEME), na forma de um órgão autônomo do então Ministério da Previdência e Assistência Social, diretamente subordinado ao ministro e com jurisdição sobre todo o território nacional. A CEME, ambiciosamente, tinha por finalidade “promover e organizar o fornecimento, por preços acessíveis ou a título gratuito, de medicamentos a quantos brasileiros não pudessem adquiri-los a preços comuns do mercado”.
O modelo então utilizado era de gestão pública direta e centralizada, através de um órgão específico responsável pela emissão de diretrizes e a participação direta em suas execuções. Restrições impostas ao administrador público e costumeiras pressões políticas levaram a CEME a uma permanente instabilidade de gestão – o que pode ser ilustrada para o fato de que, em seus 26 anos de existência, teve quinze presidentes e sofreu diversas alterações de vinculação.
Durante toda sua existência a CEME atravessou constantes situações de crise em sua autonomia financeira e administrativa, sob espúrias pressões de grupos com interesses privados – nacionais e multinacionais, fatos que resultaram em situações de grave desabastecimento do mercado nacional que deveria ser atendido pela CEME, já que sua principal atividade era a aquisição e a distribuição de medicamentos à rede pública.
Como geralmente ocorre no Brasil, em vez de se corrigirem os problemas atacando de frente as suas reais causas, a decisão governamental passou pela “retirada do sofá da sala”. Assim sendo, em 1997 foi extinta a CEME com a transferência de suas atribuições para diversos órgãos do Ministério da Saúde.
A despeito de todos esses fatos, e a bem da verdade, deve ser dito que a CEME teve um relevante papel no processo de desenvolvimento industrial da química fina ao longo dos anos 80, especialmente após a edição da Portaria Interministerial n°04/84, contando com uma eficiente articulação governamental realizada pelo então Conselho de Desenvolvimento Industrial (CDI). O CDI, no âmbito dessa Portaria, teve por atribuições examinar e promover projetos privados de desenvolvimento industrial na área da química fina, ensejando-lhes o aporte de recursos para seu financiamento via sistema BNDES, contando com a parceria privilegiada da CEME para assegurar o mercado interno e, via Codetec em especial, apoiar o desenvolvimento tecnológico. Nesse cenário ocorreu um forte crescimento do setor industrial da química fina, representado por maciços investimentos privados que superaram a casa de um bilhão de dólares entre 1984 e 1990.
Em realidade, a política industrial para a química fina, que foi competentemente conduzida pelo governo brasileiro entre 1984 e 1989, serviu de modelo ao desenvolvimento industrial posteriormente adotado no leste asiático. Até o início dos anos 80, o Brasil se encontrava tecnologicamente mais avançado na área química do que tais países, fato resultante da política industrial aplicada com sucesso na petroquímica ao longo dos anos 70. O que fez a diferença em termos de desenvolvimento industrial da química fina atingido hoje pelo Brasil e pelos tigres asiáticos foi a conhecida descontinuidade administrativa brasileira. A política industrial para a química fina brasileira perdurou somente cinco anos (de 1984 até 1989 – retomada timidamente em 2004), enquanto nos países asiáticos prevalece vigente até hoje.
Outro aspecto a considerar reside na montagem do modelo de gestão pública e na ambição de seus propósitos. Em vez de se iniciar modestamente a partir de um modelo piloto e, com ele, testar e desenvolver a melhor forma de gestão, procura-se desde o início definir ambiciosos projetos, que geralmente resultam em frustrações por inadequação à realidade nacional.
Nesse cenário cabe destacar uma recuperação da memória nacional procedida pelo professor Kurt Politzer, em entrevista concedida a FACTO ABIFINA n° 15, edição relativa ao período setembro/outubro de 2008, quando ele mencionou o papel desempenhado pelo engenheiro Leopoldo Miguez de Mello na criação da Petrobras. No início dos anos 50, duas correntes de opinião dividiam os debatedores envolvendo a forma como deveria se proceder a pesquisa e a exploração do petróleo brasileiro – naquela época esse recurso natural era uma incógnita em termos de valor patrimonial. De um lado o grupo nacionalista defendia uma tese com forte conteúdo ideológico – a exploração sob monopólio estatal, para ser assegurada a soberania do país nessa estratégica área. De outro lado, com não menos razão, defensores da iniciativa privada alegavam a absoluta ausência de agilidade na máquina pública para essa tarefa; pensava-se, então, na exploração do petróleo sob gestão direta do Conselho Nacional do Petróleo (CNP).
Evidentemente esse órgão governamental não reunia as condições requeridas para uma eficiente operação de atividades que exigiriam elevados recursos, sofisticada tecnologia, agilidade decisória e flexibilidade executiva. Miguez de Mello, então técnico do CNP, modestamente apresentou uma idéia simples para solucionar o problema: criar uma empresa pública, ou seja, colocar o ente público gerindo patrimônio do Estado, mas se valendo de práticas usadas na área privada. A sugestão chocou pelo inusitado da idéia, posto que não havia ainda experiência nem legislação definindo empresas públicas, como ocorre hoje no país. Esse conceito, elaborado por um patriota focado na busca de soluções simples para os problemas nacionais, vingou – talvez até porque atendia as principais restrições existentes ao projeto. Assim, foi possível a criação da Petrobras desvinculada da administração direta, na forma dessa exemplar empresa pública que apresenta enorme sucesso em suas atividades pelos resultados operacionais que hoje se visualizam com maior clareza e, principalmente, por ter viabilizado a implantação de um grande parque industrial no país fabricante de equipamentos e de insumos para a exploração e refino de petróleo, fornecedores de serviços especializados e promovendo parcerias com empresas privadas na petroquímica, na exploração e no refino de óleo, gerando renda e emprego qualificado no país.
A ABIFINA, como membro do Conselho Consultivo de Farmanguinhos, apoiou uma proposta apresentada pelo diretor do referido laboratório visando uma reorientação estratégica do instituto para bem atender sua missão no complexo industrial da saúde, criado no âmbito da Política de Desenvolvimento Produtivo do governo federal. De acordo com a sugestão, Farmanguinhos sofreria uma mudança em sua configuração jurídica – respeitando o atual vínculo com a Fiocruz, da qual resultasse uma operação administrativa, financeira, industrial e comercial moderna, ágil, flexível e responsável, à semelhança das empresas privadas. Seria requerida uma mudança no marco regulatório de Farmanguinhos nas áreas de orçamento e finanças, bem como no seu relacionamento com outros agentes governamentais, com destaque para a Anvisa. Também seria requerida a adoção plena dos contratos de gestão destinados a produção de medicamentos para o Ministério da Saúde e os demais agentes públicos na área da saúde. Serviria, ainda, como instrumento para a implantação de políticas públicas na área da saúde, validando propostas com suas realizações industrial, econômica e comercial pioneira.
Com essa nova modelagem Farmanguinhos poderia vir a se constituir em um agente governamental pioneiro para testar industrialmente e para modelar inovações tecnológicas valendo-se de parcerias público-privadas à semelhança do ocorrido com o Projeto Efavirenz – iniciativa de inequívoco sucesso, com o objetivo de atender demandas internas e, também, daquelas provenientes de acordos de cooperação com países menos desenvolvidos na área da saúde pública. Poderia, ainda, contribuir para a preservação do domínio público nacional em conhecimento científico e tecnológico através de colaboração efetiva com o Instituto Nacional da propriedade Industrial (INPI) na análise dos pedidos de patente de fármacos e medicamentos, via apresentação de subsídios ao exame dos mesmos. Serviria, dessa forma, como modelo para outros laboratórios públicos privilegiar, em suas respectivas áreas de atuação, o incentivo à fabricação nacional de uma indústria comprometida com a qualidade, a eficiência e o interesses públicos e a implantação de uma nova orientação pública visando à aquisição de princípios ativos via contratação dos serviços de fabricação realizados por empresas privadas localizadas no país, em períodos plurianuais. Além disso, serviria ao Ministério da Saúde como um instrumento prático para ser avaliada a viabilidade técnico-econômica de eventuais licenciamentos compulsórios de patentes industriais, onde o interesse público sinalizasse nesse sentido ou quando ocorressem práticas abusivas do poder econômico, inclusive quando derivadas do uso abusivo do sistema de patentes e, em especial, na ausência da fabricação local.
Em síntese, objetiva-se que Farmanguinhos venha a se constituir em um modelo protótipo para a difusão da idéia de se formarem parcerias público-privadas de empresas privadas nacionais com laboratórios oficiais regionais, para a fabricação contratada de produtos no país, sem conter a centralização, os excessos e os desvios de conduta apresentados no passado pela CEME, mas sem se perder a magnífica oportunidade representada pelo uso do poder de compra do Estado.
É importante destacar que não se busca substituir o produtor privado pelo Estado – longe disso e bem ao contrário, mas sim potencializar sua atuação através da criação de parcerias público-privadas que, sem serem desfiguradas por influências político-partidárias ou outros desvios de função, objetivem atender programas do interesse estratégico para o país via produção local, assim gerando renda interna e emprego para brasileiros, e não para asiáticos como hoje ocorre.