REVISTA FACTO
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Nov-Dez 2008 • ANO II • ISSN 2623-1177
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A competição (ou não) na área farmacêutica
//Matérias

A competição (ou não) na área farmacêutica

Depois de quase um ano de investigação minuciosa sobre o lançamento e a comercialização, entre 2000 e 2007, de 219 medicamentos por empresas farmacêuticas nos países da comunidade, a Comissão Européia divulgou seu relatório preliminar sobre competitividade na indústria farmacêutica. A Comissão suspeitava que as empresas farmacêuticas ditas inovadoras, isto é, aquelas que têm como um de seus objetivos a descoberta de novos princípios ativos farmacêuticos, estivessem violando os artigos 81 e 82 do Tratado da Comunidade Européia que tratam de práticas anti-competitivas e regulação da concorrência.

A principal conclusão do relatório é a de que há evidentes indícios de que as empresas inovadoras estão adotando práticas condenáveis para impedir a entrada no mercado de potenciais concorrentes a seus produtos. A estratégia utilizada para isto por aquelas empresas está baseada na utilização do sistema de patentes e na exploração da ameaça de litígios judiciais.

Os resultados do relatório não são propriamente uma surpresa. Há dezenas de publicações de especialistas e acadêmicos, em todo o mundo, que vêm, há algum tempo, apontando para o uso impróprio do sistema de patentes – a obtenção de patentes triviais sobre diferentes características de uma mesma molécula, como forma de estender o prazo de proteção patentária e afastar a concorrência de produtos similares e genéricos. No jargão da indústria isto é chamado de patenteamento estratégico e há um sem número de especialistas em métodos de prolongar o tempo de exclusividade de mercado de uma molécula através da obtenção de inúmeras patentes sobre elas. Quem quiser conhecer a metodologia é só se inscrever em alguns dos inúmeros cursos, seminários etc. que são organizados, todo ano, por diversas consultorias especializadas.

O governo americano também já se havia debruçado sobre o problema da competitividade na indústria farmacêutica através de estudos da Federal Trade Comission – FTC em 2004, e do General Accounting Office – GAO, em 2006. Os relatórios destes órgãos já apontavam o problema da diminuição do lançamento de novos produtos e das restrições à entrada de concorrentes genéricos no mercado em função do uso estratégico de patentes e de litigiosidade.

A importância do estudo da Comissão Européia é que ele foi feito sobre um número grande de produtos de empresas atuando em mais de vinte países que formam o segundo maior mercado farmacêutico do mundo. O valor ex-fábrica do mercado europeu de medicamentos é de 138 bilhões de Euros atingindo a 214 bilhões de Euros na venda a retalho. A constatação dos mesmos problemas em todos os países pesquisados mostra que a estratégia das empresas é global.

Em resumo, as principais conclusões do relatório foram:

– As empresas inovadoras estão desenvolvendo estratégias de patenteamento defensivo para aumentar o tempo de exclusividade de mercado de seus produtos e evitar o lançamento de produtos similares e a entrada de produtos genéricos no mercado. Esta estratégia faz uso do licenciamento de diferentes atributos de um mesmo medicamento – polimorfos, segundos usos, sais, ésteres, diferentes formulações, etc. O relatório cita o caso extremo de um medicamento sobre o qual foram obtidas nada menos de 1.300 patentes no conjunto de países em que o estudo foi realizado.

– Quando está prestes a se esgotar o prazo de proteção de um produto comercialmente importante, as empresas inovadoras estão lançando produtos de segunda geração, com pouca ou nenhuma vantagem terapêutica sobre o produto existente, mas com proteção patentária diversa e mais longa que a do produto original. Quando o segundo produto é lançado, sob intensa campanha promocional, o produto original é retirado do mercado, dificultando o lançamento de concorrentes genéricos.

– As empresas inovadoras estão utilizando a abertura de processos judiciais alegando infração aos direitos de patentes como forma de intimidar as empresas de genéricos. A Comissão constatou a abertura de cerca de 700 de tais processos os quais levaram em média cerca de 3 anos para sua conclusão. 149 destes chegaram a um veredicto final o qual foi, em mais de 60% dos casos, em favor das empresas de genéricos mostrando que as alegações da empresas inovadoras não tinham fundamento e os processos abertos visavam apenas postergar o lançamento de produtos concorrentes no mercado. Para 68 destes litígios para os quais dados mais detalhados são disponíveis o custo foi de cerca de 420 milhões de Euros, ou seja, cerca de 6 milhões de Euros por caso, quantia que certamente inibe a atuação de empresas de menor porte receosas de enfrentar uma acusação de infração de patente, ainda que esta não tenha substância.

– As empresas inovadoras estão fazendo acordos com as empresas de genéricos para postergar o lançamento de seus produtos, mediante pagamento direto ou contrato de licenciamento de fabricação. A Comissão encontrou cerca de 200 acordos deste tipo.

-Tem havido um grande número de oposições a patentes e a pedidos de patentes, especialmente sobre patentes secundárias, obtidas apenas para fins estratégicos. O relatório revela que em 75% dos casos a decisão do EPO foi de não conceder o pedido ou cancelar a patente, o que demonstra a utilidade de um sistema de oposição para garantir a qualidade das patentes emitidas por um escritório. Não é por outra razão que o escritório americano, o USPTO, está caminhando celeremente para a expansão desta prática.

Uma informação adicional interessante que o relatório revela é a do investimento em P&D das empresas investigadas. Entre 2000 e 2007 aquelas empresas gastaram, em média, 17% de seu faturamento em pesquisas, sendo 1,5% em pesquisa básica e o restante em testes pré-clínicos e clínicos. Entretanto, o que mais chama a atenção é o valor dos dispêndios em propaganda e atividades promocionais gasto no mesmo período: 23% do faturamento, ou seja, 4% a mais do que gastaram com P&D, fato que também já tinha sido observado na indústria farmacêutica americana.

Mais preocupante ainda foi a constatação da Comissão de que as empresas inovadoras têm exercido intensa pressão em todas as instâncias do processo regulatório para dificultar a aprovação de genéricos, alegando que os mesmos são menos efetivos, menos seguros ou de qualidade inferior. A importância das pressões de empresas farmacêuticas sobre autoridades governamentais também não é novidade, quem já teve a oportunidade de ler os registros históricos das negociações do acordo Trips, há vários livros e artigos sobre o assunto, não se surpreenderá ao ler este relatório. Mas há casos mais notórios de pressão de empresas sobre governos do que as negociações de Trips. Basta recordar que um grupo de empresas foi responsável por uma ação judicial contra o governo sul africano de Nelson Mandela quando este liberou da tutela de patentes os antiretrovirais necessários a deter a epidemia de AIDS em seu país. Ou ainda a ação da Novartis contra o governo da Índia quando o escritório indiano de patentes negou a patente sobre o medicamento anticancerígeno Glivec, num processo que poderia limitar drasticamente a contribuição da indústria daquele país para a produção de medicamentos de baixo custo para países menos desenvolvidos. A atitude da Novartis provocou uma reação mundial de repúdio a qual aderiu até mesmo a senhora Ruth Dreyfuss, ex-presidente da Confederação Suíça, pais sede da Novartis.

Sem desmerecer a importância do esforço inovador das empresas e reconhecendo que este esforço tem um preço que é necessário de alguma forma pagar, é imperioso admitir que a existência de concorrência por produtos genéricos e similares tem uma importância social inestimável. Vencido o período de proteção legal, o preço reduzido coloca medicamentos essenciais ao alcance de fatias crescentes da população e permite ao governo ampliar suas atividades de prevenção e combate à doença. O conhecimento das estratégias anti-competitivas detalhadas no relatório da Comissão Européia permite ao Brasil tomar medidas para que as mesmas não venham a proliferar por aqui.

Marcos Oliveira
Marcos Oliveira
Membro do Conselho Consultivo da ABIFINA.
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