O Ministério da Saúde começa a implantar uma política pública especialmente voltada para o Complexo Industrial da cadeia produtiva farmacêutica, contemplando o setor com medidas de estímulo à produção nacional, para tanto estruturando parcerias público-privadas
Segundo o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, o diagnóstico do PAC da Saúde apontou o déficit do balanço comercial do setor como um problema central. Para exemplificar, ele menciona estudo do IBGE segundo o qual os gastos com saúde respondem por mais de 8% do PIB e geram mais de três milhões de empregos diretos. Boa parte desses números está ligada às importações. “Quebrar paradigmas é deixar de ver o gasto em saúde como uma despesa financeira e passar a vê-lo como investimento estratégico no futuro. Se isto for feito, como está no Mais Saúde, poderemos reduzir o déficit comercial em cerca de 20%”, afirma.
O pontapé inicial do Ministério da Saúde se deu de fato com a edição do decreto de 12 de maio de 2008 que criou o Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde – Gecis. Constituído em 26 de agosto, o órgão tem por competência promover ações concretas visando à criação de um marco regulatório brasileiro na área, além de reduzir gargalos legais, tributários e financeiros que tornam o país dependente de produtos e tecnologia estrangeiros. Segundo Temporão, este foi um passo decisivo na estratégia traçada pelo Ministério. “Já estamos propondo medidas para ampliar o uso do poder de compra do Estado, para o financiamento à inovação e para definir a estrutura tributária do Complexo da Saúde”, afirma.
Mais uma injeção de ânimo foi dada no setor pouco depois, com a portaria nº 978, de 16 de maio de 2008, que lista os cem produtos prioritários para as compras do governo, explicitando as áreas para as quais a iniciativa privada poderá direcionar seus investimentos com mais segurança e que poderão ter maior acesso a financiamentos do BNDES. Com isso, se pretende estimular o desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde nas áreas de fármacos e medicamentos, vacinas e soros, hemoderivados, dispositivos de diagnóstico e equipamentos. “O uso do poder de compra será estendido para todo o complexo da saúde desde que as atividades apoiadas tragam ganhos tecnológicos e sobretudo para a saúde da população. Este é o círculo virtuoso em que acreditamos”, esclarece Temporão.
Novas diretrizes foram também estabelecidas para a aquisição de fármacos e medicamentos pelos órgãos do Sistema Único de Saúde – SUS, por meio da portaria interministerial nº 128, de 29 de maio de 2008. Desde então, exige-se que a empresa contratada para a fabricação de produtos requeridos pela área da saúde pública tenha unidade industrial estabelecida em território nacional, o que possibilita o rastreamento da cadeia produtiva e promove uma interação permanente entre os agentes públicos e privados, estimulando o desenvolvimento tecnológico e industrial no setor farmoquímico.
Para o diretor do laboratório público Farmanguinhos, Eduardo Costa, a concretização do projeto do Complexo Industrial da Saúde demonstra uma mudança de orientação política. Se antes a preocupação era exclusivamente com o orçamento e a entrega de medicamentos para os programas públicos de saúde, agora a visão é de que a saúde da população “não depende apenas de remédio; depende de emprego, de trabalho, do meio ambiente.” Segundo ele, nesse contexto a produção nacional passa a ser valorizada, o que traz duplo benefício – economia para os cofres públicos somada à geração de trabalho e renda para mais brasileiros.
De acordo com Temporão, o próximo ano será decisivo para a implementação da nova estratégia do Ministério da Saúde e de um marco regulatório favorável à produção, inovação e atendimento das necessidades do setor. O governo, segundo ele, poderá inclusive estender a experiência promissora da parceria público-privada já aplicada na produção de ARV a outros medicamentos, como os da portaria 978. Na visão do ministro, essas mudanças impõem a reformulação do aparato legal existente. A primeira medida nesse sentido se deu um ano antes da criação do Gecis, diante dos valores astronômicos cobrados pelo titular da patente do Efavirenz, componente do coquetel anti-Aids. Desafiando laboratórios multinacionais e de forma geral os interesses do primeiro mundo, o governo brasileiro usou o instrumento da licença compulsória de patente para fabricar o medicamento no país.
“Cumprimos rigorosamente a legislação vigente ao articular os direitos de propriedade industrial com os interesses da saúde pública e do desenvolvimento. O marco regulatório não foi quebrado, mas sim usado numa perspectiva que faz jus às promessas constitucionais de vermos também a saúde como um direito do cidadão. A produção local do Efavirenz mostra que desenvolvimento tecnológico nacional é possível e que podemos fazer isto no contexto de uma forte parceria entre o setor público e a iniciativa privada”, explica Temporão.
A produção do Efavirenz nacional está sendo estruturada em parceria pelos laboratórios públicos Farmanguinhos e Lafepe e empresas farmoquímicas com fábricas no país. Mas Costa lembra que, antes dessa experiência, Farmanguinhos já investia constantemente na pesquisa de novos produtos, como um medicamento contra malária formulado a partir da combinação de duas substâncias conhecidas e o primeiro antirretroviral de uso infantil do país, que já tem pedido de registro protocolado na Anvisa. Alguns desses projetos contam com a cooperação do setor privado. O grande diferencial agora é haver no horizonte uma política pública para intensificar as parcerias.
Há cerca de dois anos, Farmanguinhos chegou a analisar uma proposta de licença voluntária do Efavirenz apresentada pelo laboratório Merck, mas considerou-a inadequada e logo depois emitiu o parecer de que a única saída para viabilizar a produção nacional seria a licença compulsória. Eduardo Costa lembra que, em seguida, reuniu representantes de toda a indústria farmoquímica nacional. “Selecionamos os três fabricantes que achamos mais preparados. Orientamos, compramos os materiais para poderem analisar e então seguirem adiante no desenvolvimento. Já fizemos a formulação, os testes de estabilidade e o lote piloto.”
O Efavirenz nacional passa, neste momento, pela finalização de processo de registro junto à Anvisa, onde foram apresentados os resultados favoráveis de estudos de bioequivalência. No começo de 2009 o medicamento começará a ser produzido em escala industrial pelos laboratórios públicos Farmanguinhos e Lafepe, com princípios ativos fabricados localmente por empresas atuantes no país, passando a suprir as necessidades do Programa Nacional de DST-Aids. Costa afirma que a compra dos insumos será feita integralmente junto à indústria nacional, salvo nos casos em que o mercado doméstico não possa fornecê-los, pois, segundo ele, a verticalização da produção que inclui o princípio ativo ainda não chega a todos os intermediários químicos requeridos para sua síntese. Em algumas etapas da cadeia produtiva será necessário comprar insumos no exterior. Com relação à política de preços, Costa afirma: “Vamos fazer o preço de custo aqui do Brasil”, garantindo que os genéricos importados da Índia não serão tomados como referência.
O exemplo da Índia
Atualmente o setor farmacêutico indiano fatura boas vendas no mercado internacional, inclusive para o Brasil, devido em grande parte às isenções tributárias, o que garante preços extremamente competitivos. A informação consta de artigo publicado na revista Espacios, de autoria do economista Roberto Lovón, mestre em engenharia de produção e pesquisador em projetos ligados a políticas de ciência, tecnologia e educação.
O setor farmoquímico é um dos mais significativos da indústria indiana: movimentou US$ 4 bilhões em 2000 e cresce cerca de 10% ao ano, de acordo com o estudo. O caso serve de exemplo, pois há três décadas a Índia estava atrás do Brasil nesse segmento e, depois de montar um bem sucedido complexo produtivo, transformou-se em grande exportador mundial de fármacos.
A política tributária da Índia, que taxa a transferência de tecnologia do exterior e concede isenções para importação de insumos, faz parte de uma ampla estratégia oficial de apoio à indústria que dura aproximadamente três décadas e que levou a Índia a ter, na virada do século 20, sete companhias farmacêuticas locais entre as dez principais atuantes no seu mercado. Ou seja, diferentemente da realidade brasileira as empresas multinacionais tiveram uma progressiva redução na sua parcela de participação no mercado indiano, de 75% para 35%, enquanto a indústria local consolidou sua presença.
Entre os diversos itens do plano de ação criado para deslanchar o segmento farmoquímico indiano, a pesquisa de Lovón destaca a criação de uma fundação destinada à promoção da pesquisa e desenvolvimento de medicamentos, logo após a aprovação da Lei de Patentes; a reestruturação e a modernização dos centros de P&D do país; a criação de um fundo de investimento governamental voltado para estimular atividades de P&D de novos medicamentos; e a criação de uma autoridade governamental de monitoramento de preços, a Ordem de Medicamentos.
Na avaliação de Lovón, o período em que a Índia não reconhecia patentes de processos estimulou a engenharia reversa. Assim, quando introduziu esse tipo de patente no seu sistema em 1970, a indústria doméstica já era capaz de desenvolver processos de forma autônoma. Hoje, ao produzir fármacos e medicamentos de qualidade e a preços baixos, a indústria indiana expande suas exportações a taxas de mais de 20% ao ano, tendo como principais destinos no ano 2000 os EUA, Rússia e Alemanha.
Grande parte do setor industrial farmoquímico da Índia é formado por uma rede de laboratórios nacionais dotada de “pessoal da área científica muito motivado, com os quais até mesmo empresas multinacionais cooperam em vários projetos”, segundo Lovón. Ele acrescenta que “tecnologias de custo eficiente para a produção de fármacos e uma indústria de equipamentos bem desenvolvida são importantes e essenciais recursos indianos.”
O desempenho da Ranbaxy evidencia a efetividade do conjunto de medidas implementadas nas últimas três décadas para impulsionar o complexo industrial privado no setor farmoquímico da Índia. Essa empresa, totalmente verticalizada na produção de genéricos, já se consolidou como uma multinacional, tendo inclusive implantado no Brasil uma unidade industrial. De acordo com a análise de Lovón, a Ranbaxy mantém o objetivo claro de tornar-se uma companhia baseada em pesquisa com capacidade de descobrir novas drogas. Peculiaridades nacionais à parte, o exemplo indiano é digno de ser seguido.
Avanços no Brasil
A licença compulsória do Efavirenz tornou-se, dentro do contexto do Complexo Industrial da Saúde, a mola propulsora da consolidação no Brasil de um segmento farmoquímico bem estruturado e auto-sustentável, em condições de se desenvolver independentemente da tecnologia estrangeira e com relativa autonomia em relação aos insumos importados. As indústrias já começam a se preparar para o início dessa virada histórica.
Na parceria com o Ministério da Saúde para a fabricação do Efavirenz coube a cada laboratório privado produzir, com recursos e instalações próprios, o princípio ativo que Farmanguinhos transformará em medicamento, com apoio do Lafepe. O laboratório Cristália foi um dos parceiros escolhidos. Após desenvolver mais de 60 moléculas diferentes em sua divisão farmoquímica, onde são produzidos antirretrovirais e outros princípios ativos, a empresa trabalhava no desenvolvimento do próprio Efavirenz quando o governo manifestou interesse na quebra da patente. Foi então que a Cristália acelerou o processo no intuito de se posicionar como fornecedor para o programa de DST-Aids.
No caso da Globe Química, o reconhecimento do mercado e seu posicionamento entre os maiores produtores brasileiros de farmoquímicos contaram para que fosse aceita entre os parceiros do Ministério da Saúde, segundo o diretor Jean Peter. “Desenvolvemos nossa própria tecnologia a partir de intermediários importados, e é com base nessa produção própria que estamos fornecendo o Efavirenz para Farmanguinhos”, conta, complementando que foi necessário realizar novos investimentos em tecnologia e controle de processos para atender aos requisitos do acordo. Já a Nortec, para se tornar fornecedora do Efavirenz, adaptou sua planta industrial com o objetivo de garantir um nível de segurança ambiental e de trabalho compatível com o empreendimento.
Para a Globe, a parceria público-privada não é uma novidade. Há dois anos a empresa firmou com Farmanguinhos, depois de um processo de negociação de preços, um contrato válido por cinco anos. Jean Peter está convicto de que “a regulamentação, a nova portaria e a criação do Complexo Industrial da Saúde irão abrir espaço para vários outros projetos. Já temos vinte novos fármacos a serem desenvolvidos pela Globe e em cada um desses projetos pretendemos criar parcerias com laboratórios do Estado – não necessariamente com Farmanguinhos.”
Na avaliação de Nicolau Lages, diretor da Nortec, a parceria público-privada é a maneira mais eficiente para se contratar a fabricação de produtos para a saúde, em especial os farmoquímicos. “Esse sistema permite aos laboratórios oficiais a fabricação de genéricos, assim como a redução dos atrasos nas entregas de medicamentos para o Ministério da Saúde e Secretarias Estaduais. Também reduzirá os custos adicionais que decorriam de um alto nível de devoluções e reprocessamento de produtos entregues fora das especificações técnicas”, afirma.
A Nortec tem experiência acumulada na pesquisa e fabricação de antirretrovirais, inclusive por meio de parcerias com laboratórios do sistema público, como na produção da Zidovudina junto com Farmanguinhos. Segundo Nicolau, desde 2006 a empresa já tinha o processo do Efavirenz desenvolvido em laboratório, com amostras aprovadas em Farmanguinhos e no Lafepe. Em 2007, após inspeções técnicas, a empresa foi pré-qualificada pelo Ministério da Saúde para a produção. Esse histórico contribuiu para que a Nortec fosse qualificada para assumir, no caso do Efavirenz, a responsabilidade pelo scale up do processo visando à produção industrial, incluindo sua validação, além de qualificar os fornecedores das matérias-primas, importar parte delas e fabricar o produto com acompanhamento dos inspetores de Farmanguinhos.
O que vem pela frente
Nicolau lembra que ainda falta o Ministério da Saúde definir algumas regras da portaria 128 para que sua aplicação seja estendida a todos os laboratórios oficiais na fabricação de medicamentos para o SUS, além da publicação definitiva dos critérios para a pré-qualificação das empresas, conforme a consulta pública nº 1 de 23 de junho de 2008. Mesmo com essa pendência, a participação ativa do empresariado na estruturação do novo Complexo confere segurança para começar a investir.
Jean Peter, da Globe, conta que a empresa se reuniu em Brasília com o Departamento de Economia da Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, para discutir os produtos que seriam incluídos na portaria 128. De acordo com Jean, o conjunto de fármacos em desenvolvimento hoje pela Globe já está de acordo com essa lista. “Estamos trabalhando aceleradamente, nos equipando para ter condições de desenvolver esses produtos e trabalhar em parceria com diversos laboratórios do Estado. Nosso planejamento foi alterado e em breve apresentaremos ao BNDES um projeto de investimento na área do laboratório de desenvolvimento e na própria planta industrial.”
Apesar de a mobilização inicial para estruturar o Complexo Industrial da Saúde ter injetado novo fôlego no setor de química fina, especialmente pelo uso do poder de compra do Estado, uma parcela das empresas considera que o momento é de temperar o otimismo com uma certa cautela. “Mesmo que somente Farmanguinhos esteja adotando neste momento a portaria 128, tendo em vista a sua capacidade de compra, já dá para sentir uma acentuada melhora nas contratações do Governo. As expectativas são muitas, mas ainda não há fato que determine a necessidade de mudança no planejamento das empresas”, avalia Nicolau.
Para Ogari Pacheco, o investimento do Estado nessa etapa inicial é “relativamente pequeno”, mas terá grande relevância se de fato consistir na primeira de uma série de ações sistemáticas. “Se houver continuidade, teremos dado um passo consistente no sentido de fortalecer a indústria nacional e diminuir a dependência do mercado externo”, comenta. Ele considera que a garantia de ter um mercado comprador é primordial para o segmento farmoquímico, especialmente no atual cenário de crise financeira, com recursos escassos e altas taxas de juros. “Pouco adianta o financiamento se o que eu produzir não tiver um consumo previamente definido.”
Lages, da Nortec, lembra que a partir dos anos 90 o setor de química fina “foi praticamente aniquilado” e somente no segundo mandato do presidente Lula as primeiras decisões da Política Industrial lançada no primeiro governo começaram a apresentar resultados. De acordo com o estudo do economista Roberto Lovón, o déficit do setor farmacêutico nessa década pulou de US$ 440 milhões para o patamar de US$ 2 bilhões. Os laboratórios multinacionais dominavam o mercado e, em 1998, somente uma empresa de capital majoritariamente nacional – a Aché – mantinha-se entre as dez maiores do setor. A pesquisa mostra que, nesse período, a produção de fármacos para o mercado interno e externo permaneceu em cerca de US$ 600 milhões/ano, o que aumentou a dependência das importações em um percentual entre 40% e 80% da demanda nacional.
A pesquisa de Lovón destaca que, no início dos anos 90, embora a indústria nacional representasse cerca de 80% do total das empresas instaladas no país, ela detinha menos de 20% do mercado e praticamente não inovava. Alguns obstáculos ao desenvolvimento tecnológico do setor, segundo ele, eram o fato de o P&D farmacêutico ser fortemente centralizado nos países de origem das empresas multinacionais e a conjuntura desfavorável da política de propriedade industrial da época, que favorecia a cópia de moléculas existentes mas não o desenvolvimento de novas moléculas.
Com a abertura comercial e a extinção da reserva de mercado, poucos laboratórios foram capazes de manter a produção verticalmente integrada. Para completar, a desvalorização do Real em 1999 achatou os preços dos produtos. Com isso a produção caiu para uma base inferior a US$ 500 milhões/ano. Segundo a pesquisa de Lovón, a aprovação da Lei de Patentes acentuou ainda mais a importação de matérias-primas para medicamentos. As grandes corporações internacionais passaram a importar das matrizes em vez de fabricar os produtos no Brasil e encareceram os preços finais, tornando o acesso da população aos medicamentos cada vez mais difícil. Outro problema que se agravou nos anos 90 foi a tendência às fusões e aquisições de empresas brasileiras por estrangeiras, o que contribuiu para o aumento da dependência tecnológica no setor.
Entretanto, a partir de 1995, mais por instinto de sobrevivência do que por qualquer espécie de estímulo externo, as empresas brasileiras começaram gradativamente a aumentar seus investimentos em P&D, até atingir o patamar de R$ 112 milhões em 2001. Esse valor representou um incremento de 411,13% no acumulado do período e de 31,3% na média anual – bem superior ao incremento de 12,2% registrado nesse mesmo período nos investimentos em P&D da indústria farmacêutica mundial, conforme constatado pela Pharmaceutical Research and Manufacturers of America (PHRMA).
Na avaliação de Jean Peter, a expectativa do setor farmoquímico hoje é grande, justamente por essa indústria ter sofrido com a política anterior de abertura e pela falta de estímulo à produção no Brasil. Ele pondera que os efeitos do estrago ainda são muito maiores do que os ganhos concretos da atual retomada: das 200 unidades de produção existentes no ano 2000, a maioria de pequeno porte, hoje restam no máximo oito. “Produtores de farmoquímica pura, eu diria que podemos contar nos dedos de uma mão. A portaria 128 vai dar um incentivo às empresas que investirem, porque poderão ter a confiança de encontrar um mercado para vender seus produtos.”
Independência estratégica
A fabricação de fármacos no mercado interno pode não significar num primeiro momento o fim da dependência em relação aos insumos importados, mas tende a impulsionar a indústria a desenvolver novos processos e a se capacitar tecnicamente em direção a uma maior autonomia. A verticalização, segundo Ogari Pacheco, é a estratégia comumente usada pelos laboratórios, na medida em que possibilita desenvolver um produto complexo a partir da combinação de insumos mais simples. Com isso, a empresa se torna capaz de realizar todas as etapas de fabricação, ficando imune a surpresas desfavoráveis do mercado. Aí, então, está preparada para buscar propostas mais vantajosas no exterior. É dessa forma que a Cristália está lidando com a experiência de produção do Efavirenz nacional.
“Quando a gente tem certeza de ter concluído todos esses passos, então vai ao mercado internacional e busca um intermediário mais elaborado com preço compatível. Assim poupamos reatores, poupamos tempo. Mas se houver uma interrupção de abastecimento, podemos voltar atrás e fazer aqui. Esta estratégia a Cristália tem utilizado para todos os produtos”, conta Pacheco. A indústria nacional de química de base não tem condições de atender a toda a demanda interna, até porque “nenhum país do mundo produz todos os insumos farmoquímicos de que necessita”, afirma Jean Peter, da Globe. Não se trata apenas de uma questão tecnológica, mas também, e principalmente, de economia de escala. Peter considera que o ganho do Brasil com o Complexo Industrial da Saúde será a redução das importações dos produtos mais importantes para a cadeia produtiva dos medicamentos essenciais aos programas de saúde pública.
“Eu diria que cada uma das empresas, aos poucos, vai desenvolver conhecimento em reações químicas específicas para produzir intermediários para o sistema como um todo. Então teremos duas coisas: uma é o desenvolvimento do produto e a outra é a aquisição de competência em certas etapas do processo”, diz Jean Peter. Segundo ele, a Globe está se especializando em algumas reações químicas que eventualmente poderão ser usadas por outras empresas também. “É desta maneira que no mundo inteiro se trabalha, pois ninguém domina toda a farmoquímica. E é mais ou menos isso que irá acontecer no Brasil; o problema é que o país está partindo de um ponto muito baixo na curva de produção.”
Lages, da Nortec, segue o mesmo raciocínio e acrescenta que, apesar de a globalização naturalmente levar à compra de commodities no exterior, é importante se buscar um meio termo. “O instrumento da independência hoje em dia se chama conhecimento. Se no passado um país para ser soberano precisava das armas, agora o conhecimento é o instrumento mais importante que nós podemos dispor para afirmar nossa soberania.”
O papel do Gecis
Já foram realizadas duas reuniões do Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde, que tiveram entre seus resultados a constituição de quatro Grupos de Trabalho. Um deles é o GT Desoneração das Importações, coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior – MDIC, com a função de elaborar a lista de produtos estratégicos que ainda não contam com produção nacional.
O GT Compras Governamentais, por sua vez, é coordenado pela Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial – ABDI e visa privilegiar produtos fabricados internamente por meio do incentivo ao desenvolvimento tecnológico, além de aprimorar a portaria interministerial nº 128. O GT de Ações Transversais dos Fundos Setoriais, coordenado pela Financiadora de Estudos e Projetos – Finep, prestará apoio ao desenvolvimento tecnológico dos produtos prioritários definidos na portaria nº 978.
Segundo Zich Moysés, do Ministério da Saúde, a agenda do Gecis resultou também na elaboração de um regimento interno e na aprovação do Fórum de Articulação com a Sociedade Civil, de caráter propositivo. Nele foi constituído o GT de Tributação, coordenado pelo Ministério da Fazenda, para desonerar a produção. Compõem esse Fórum entidades representativas da indústria farmacêutica e de medicamento, com a participação de pequenas e grandes empresas. Está prevista a adoção de medidas na área sanitária, segundo informou Moysés, que ressalta a participação do Ministério da Saúde nos editais para subvenção econômica às empresas propostos pela Finep e o incentivo à inovação concedido pelo Profarma, do BNDES.
O diretor da Nortec, Nicolau Lages, sugere que o Gecis trabalhe prioritariamente nos três pilares que considera mais críticos para a indústria nacional – o uso do poder de compra do Estado, a isonomia regulatória e a isonomia tributária do produto nacional com o importado. A contribuição ativa do setor industrial ajuda a compor a estratégia do Gecis. Jean Peter conta que a Globe participou, por intermédio da Abifina, de uma primeira reunião com o órgão, que apresentou seus objetivos.
Em uma segunda etapa a própria Globe foi a Brasília para apresentar as competências da empresa e mostrar os produtos que tem condições de desenvolver. Agora está em curso a etapa de travar contato direto com laboratórios oficiais para desenvolver parcerias, de acordo com orientação do próprio Grupo. “Já temos duas parcerias articuladas, mas certamente conseguiremos outras. Não é um trabalho feito de um dia para o outro. A expectativa do Gecis, e nossa também, é que até o fim do ano tenhamos um plano concreto de ações para os produtos que iremos produzir com parceiros definidos”, explica.
É fundamental que o conjunto dos agentes públicos e privados se mobilize neste momento, superando a inércia habitual e antigas desconfianças. O diretor da Globe enfatiza a importância dessas interações: “espero que todos sigam nesta trilha, porque se não houver compreensão entre os laboratórios oficiais e os produtores de farmoquímica teremos muita dificuldade em progredir.” Jean Peter assegura que a indústria nacional, por meio da produção customizada, pode fornecer aos laboratórios oficiais produtos de melhor qualidade e mais eficientes do que os importados que vinham sendo adquiridos nos leilões públicos. “A curto e médio prazo esses medicamentos trarão grandes benefícios econômicos e eficácia no atendimento à saúde da população”, prevê o empresário.