REVISTA FACTO
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Mar-Abr 2008 • ANO II • ISSN 2623-1177
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Mais vigilância: um direito de todos
//Entrevista Dirceu Raposo de Mello

Mais vigilância: um direito de todos

Em seu segundo mandato à frente da Anvisa, Dirceu Raposo de Mello, atual diretor-presidente da agência, tem a simpatia do setor industrial do país pelo fato de demonstrar comprometimento em manter um diálogo profícuo com o mercado para troca de experiências e maior compreensão das demandas empresariais em termos de isonomia regulatória e capacitação para fiscalização de segmentos específicos. Além disso, a agência tem investido na participação em fóruns de discussão internacionais, visando conhecer e adaptar ao estágio de desenvolvimento brasileiro as melhores práticas regulatórias mundiais. Vivendo um momento de ascensão no reconhecimento da sua importância estratégica para o desenvolvimento industrial brasileiro, a agência tem agora como prioridade atuar em total sintonia com o PAC Saúde.

Em todo o mundo estão aumentando as normas regulatórias entre países e blocos, ligadas principalmente ao controle sanitário e ambiental. Como o senhor vê o atual estágio do Brasil em termos de normas regulatórias?

A agência, assim como outras autoridades sanitárias, está empenhada em discussões técnicas para a elaboração e a adoção de referências internacionais. Essa prática se dá pela participação em fóruns internacionais como: o Codex Alimentarius, a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A criação da Anvisa, em 1999, representou um enorme avanço na área de vigilância sanitária. Anteriormente, a vigilância sanitária era considerada uma área de menor importância no contexto da saúde pública. Sua atuação permanecia dominada por atividades burocráticas e cartoriais. Nessa época, a Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde centralizava as ações relativas à esfera federal. Era uma repartição pública acanhada e de pouco prestígio, situação bem diferente da atual Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que regula um montante de bens e serviços que ultrapassam 25% do Produto Interno Bruto brasileiro.

Dois grandes fatores, entre outros, impulsionaram a regulação na área de vigilância sanitária. Externamente, a globalização revestiu de importância cada vez maior as ações sanitárias, haja vista o intenso trânsito de pessoas e mercadorias em nível mundial, não mais restritas a territórios ou a fronteiras.

Internamente, uma sucessão de eventos abalou diferentes governos e despertou a consciência de problemas sanitários novos e antigos. Podemos citar, entre outros, a morte do presidente Tancredo Neves por infecção hospitalar; o acidente nuclear de Goiânia (GO) por falta de controle das fontes radioativas de uso médico-hospitalar e odontológico; as seqüelas e os óbitos decorrentes da falsificação de medicamentos; a transmissão da Aids, hepatites e de outras doenças por ausência de controle nos bancos de sangue, nas transfusões sanguíneas, nos hemocomponentes e nos hemoderivados; as mortes por uso de água contaminada em diálise na cidade de Caruaru (PE), e de idosos devido a condições sanitárias precárias, na Clínica Santa Genoveva, no Rio de Janeiro. A lista é muito extensa e atinge diversas áreas.

A vigilância sanitária brasileira, nos últimos anos, passou a limpo muitas dessas questões e, em poucos anos, equiparou o Brasil, em vários setores, com a média dos países desenvolvidos. Nesse esforço modernizador é inegável a importância da Anvisa, seja como agência reguladora seja como coordenadora do SNVS. Apenas para exemplificar, a introdução dos medicamentos genéricos no mercado brasileiro, por si só, já seria suficiente para evidenciar os avanços mencionados.

Atualmente o marco regulatório sanitário brasileiro é um dos mais modernos do mundo. Somos considerados referência na América Latina quando o assunto é regulação sanitária. Esse reconhecimento se dá através de nossa participação junto a órgãos internacionais como a OMS, Opas, OCDE e também pelos pedidos de cooperação que recebemos de países como África, Portugal, Paraguai e Argentina, com o objetivo de conhecer nossos processos de trabalho.

A Anvisa em seu passado recente foi criticada por investir mais tempo em legislar – criando regulamentos e normas em excesso e muitas vezes mais rigorosas do que a legislação em vigor – do que em capacitar sua equipe para fiscalizar e garantir a correta interpretação dessas normas para cada situação de mercado. É real que falta capacitação para fazer valer a regulação em alguns segmentos mais específicos, como, por exemplo, plantas industriais e intermediários de síntese? Isso tem criado constrangimentos entre a agência e o mercado?

Primeiramente, há que se considerar que o arcabouço legal na área de saúde é complexo, como a própria natureza da área. Existem matérias extensas que precisam ser normatizadas. A elaboração de normas pela agência, desde seu início, foi necessária e, mais que isso, uma resposta às demandas da sociedade e do próprio setor regulado.

Cabe ressaltar, que a grande força da Anvisa é o seu quadro técnico independente, detentor de conhecimento científico e tecnológico, e capaz de embasar a primazia dos interesses da saúde pública.

Só para se ter uma noção do investimento em capacitação de recursos humanos, somente no ano de 2007 a agência utilizou cerca de R$ 5 milhões em desenvolvimento de servidores. Há que se considerar que o quadro de servidores foi renovado desde o concurso público em 2004. É preciso tempo para capacitação, especialmente em segmentos específicos. Cursos em temas especializados não são facilmente encontrados no mercado e em alguns casos a contratação de vagas pelo setor público não é simples.

Diante desse quadro, não considero que a agência se veja constrangida diante de empresas. Pelo contrário, nosso corpo técnico é bem avaliado e respeitado inclusive no âmbito internacional onde participamos freqüentemente de treinamentos e troca de experiências técnicas.

Seu primeiro mandato à frente da agência foi bem avaliado pela indústria de química fina de uma maneira geral, considerando uma inédita abertura para o diálogo direto com os empresários do setor no sentido de estabelecer parcerias para troca de conhecimento e competências. Já há uma nova cultura de fiscalização na Anvisa que encara o empresário com menos desconfiança e mais parceria, acreditando que agência e iniciativa privada desejam da mesma forma que os processos e produtos atinjam níveis de excelência que os tornem mais competitivos no Brasil e no exterior?

Sem dúvida a agência busca permanentemente parcerias com o setor regulado. Há sim uma nova cultura de fiscalização, que encara o empresário como parceiro na busca pela excelência e competitividade.

De antemão, vale ressaltar que, como princípio geral que orienta o entendimento de nossas ações, está a idéia segundo a qual as agências devem regular os mercados sob sua responsabilidade a partir de políticas públicas estabelecidas em leis, regulamentadas pelo Executivo e determinadas pelo Congresso Nacional. O diálogo entre as agências reguladoras, o governo, os agentes do mercado e os consumidores ou usuários deve ser intenso e permanente. Somente assim regras duradouras, voltadas para o interesse público, podem ser construídas. O objetivo é garantir estabilidade e previsibilidade do processo regulatório para promover o desenvolvimento. As agências reguladoras são peças fundamentais à formação do ambiente necessário à atração dos investimentos privados, com a obrigação adicional de zelar pela qualidade do serviço prestado e sua eficiência, para ficar apenas nas suas atribuições mais importantes.

Além disso, a Anvisa está em sintonia com o Ministério da Saúde e o desenvolvimento do PAC Saúde, no qual são priorizadas ações que produzirão elevado impacto no setor produtivo nacional.

Para o reconhecimento desse quadro e do empenho em configurar essa realidade, a agência se inseriu, como estratégia, no Programa Mais Saúde: Direito de Todos” do Ministério da Saúde, que objetiva aproveitar as potencialidades oferecidas pelo setor como um dos elos vitais para um novo padrão de desenvolvimento brasileiro, enfrentando os enormes desafios ainda presentes. O programa contempla 73 medidas e 165 metas num total de R$ 89,4 bilhões.

Esse conjunto de iniciativas permite consolidar a percepção estratégica de que a saúde constitui uma frente de expansão que vincula o desenvolvimento econômico ao social. Insere-se, portanto, na perspectiva aberta pelo governo do presidente Lula, ao lançar uma estratégia nacional de desenvolvimento sinalizada pela formulação e pela apresentação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) à sociedade brasileira.

A Anvisa acompanha o trabalho de agências regulatórias internacionais? Um maior intercâmbio com outros países não poderia garantir que o Brasil praticasse a mesma moeda regulatória para produtos estrangeiros que entram no país? Isso não garantiria mais competitividade aos produtores nacionais frente à crescente pauta de importações?

A Anvisa não só acompanha, como também participa ativamente e está em sintonia com os temas atuais em âmbito internacional.

Em 2007, a Anvisa manteve ativas relações de cooperação e parceria com diversos países, como Argentina, Bolívia, Cabo Verde, Chile, Colômbia, Cuba, Espanha, México, Paraguai, Peru, Portugal, Uruguai, Venezuela e Nigéria. Foram 671 missões internacionais, a maior parte de inspeção e negociação.

Ainda em 2007 realizamos inédito seminário internacional com autoridades no tema regulação para troca de experiências em construção de novos modelos de regulação e avaliação da regulação (impacto regulatório).

Para proteger e promover a saúde da população, a Anvisa também busca a atualização tecnológica e a troca de experiências e conhecimentos técnicos e científicos, especialmente nos campos de regulamentação e fiscalização.

No entanto, modelos regulatórios não podem ser simplesmente copiados. Cada país possui uma cultura institucional e empresarial diferente e o ambiente regulatório de cada Estado tem suas peculiaridades. A agência se mantém atualizada quanto às ações regulatórias no mundo todo e assim tem promovido os ajustes necessários.
Outra medida que corrobora a atualidade de nossas ações é o programa de melhoria do processo de regulamentação que está em desenvolvimento na Anvisa. Ele prevê mecanismos mais transparentes e ágeis para a troca de experiências entre a sociedade e a agência e ainda avaliação do impacto de nossas atividades regulatórias.

Não podemos descuidar da missão que move as ações da Anvisa. Proteger e promover a saúde da população é nosso objetivo precípuo, contudo, não descuidamos de nossa importância nas atividades econômicas das empresas que atuam no segmento saúde do país.

Recentemente, a Anvisa se comprometeu em responder com um plano de metas à pauta de reivindicações que a ABIFINA apresentou como representante das empresas de química fina no país. Quais os pontos de maior destaque dessa pauta e como a Anvisa pretende proceder no encaminhamento dessas reinvidicações?

Um dos pontos de maior destaque e repercussão é relacionado às novas ações da Anvisa no campo do controle e da qualificação da produção de medicamentos no país. Especificamente, refiro-me ao cadastramento e ao registro de insumos e matérias-primas utilizadas pelo parque farmoquímico nacional para a produção de medicamentos consumidos por todos nós brasileiros.

Trata-se de mais uma medida de altíssima relevância tomada pela Anvisa, a qual terá grande impacto na saúde dos brasileiros. A agência começará com o cadastramento de 400 substâncias farmacêuticas ativas, aquelas que, segundo critérios rigorosos relacionados à epidemiologia e à terapêutica, são as mais importantes do ponto de vista sanitário.

Além disso, a Anvisa estabelecerá um conjunto de critérios de qualidade e segurança que elevarão ainda mais o padrão crescente dos medicamentos produzidos no Brasil, que já contam com reconhecimento internacional.

Mas a Anvisa não levará em conta só os aspectos sanitários. Essa iniciativa também vai beneficiar a saúde econômica do Brasil. Isso porque, por um lado, vai priorizar os medicamentos mais freqüentes nas compras públicas do Estado brasileiro, que correspondem a 25% das compras de medicamentos no país, e são destinadas à distribuição gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Por outro lado, vai observar com precedência, e de forma a atender ao esforço de desenvolvimento do país, as indústrias do parque farmoquímico nacional, especialmente aquelas chamadas de laboratórios oficiais.

De quebra, por não mais haver necessidade, o país poderá deixar de importar uma enorme quantidade desses produtos, restabelecendo a nossa balança comercial na área farmacêutica, que há muitos anos registra um déficit de cerca de 80%.

Como o senhor vê o papel da Anvisa na garantia do desenvolvimento industrial no país?

Já dissemos que a Anvisa está em plena sintonia com o Ministério da Saúde para o desenvolvimento do PAC Saúde, o Programa Mais Saúde: Direito de Todos”.

O programa baseia-se em uma concepção da saúde não usualmente utilizada por nós. A saúde constitui um direito social básico para as condições de cidadania da população brasileira. Um país somente pode ser denominado “desenvolvido” se seus cidadãos forem saudáveis, o que depende tanto da organização e do funcionamento do sistema de saúde quanto das condições gerais de vida, associadas ao modelo de desenvolvimento vigente. Não basta ter uma economia dinâmica, com elevadas taxas de crescimento e participação crescente no comércio internacional, se o modelo de desenvolvimento não contemplar a inclusão social, a reversão das iniqüidades entre as pessoas e as regiões, o combate à pobreza e a participação e organização da sociedade na definição dos rumos da expansão pretendida.

No campo econômico, a saúde pode ainda ser olhada por outro prisma. A experiência internacional mostra que a saúde configura um complexo de atividades produtivas de bens e serviços que permite alavancar segmentos chave da sociedade contemporânea, baseada no conhecimento e na inovação. A estimativa internacional disponível, apresentada pelo Fórum Global para a Pesquisa em Saúde em 2006, indica que a saúde responde por 20% da despesa mundial, pública e privada, com as atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico (P&D), representando um valor atualizado de US$ 135 bilhões, sendo claramente uma das áreas mais dinâmicas do mundo.

A saúde possui, assim, duas dimensões que se associam a uma nova aposta para o desenvolvimento do Brasil: é parte da política social e do sistema de proteção social e também fonte de geração de riqueza para o país. O direito à saúde articula-se com um conjunto altamente dinâmico de atividades econômicas que podem se relacionar virtuosamente num padrão de desenvolvimento que busque o crescimento econômico e a eqüidade como objetivos complementares. Com base nessa perspectiva, o entendimento das ações voltadas para a promoção, a prevenção e a assistência à saúde como um ônus ou um fardo que apenas onera o orçamento público mostra-se limitado para se pensar a saúde como parte constitutiva da estratégia de desenvolvimento e como uma frente de expansão para um novo padrão de desenvolvimento comprometido com o bem-estar social. A saúde contribui tanto para os direitos de cidadania quanto para a geração de investimentos, inovações, renda, emprego e receitas para o Estado brasileiro.

Em termos econômicos, a cadeia produtiva da saúde, englobando as atividades industriais e os serviços, representa entre 7% e 8% do PIB, mobilizando um valor em torno de R$ 160 bilhões, e constitui uma fonte importante de receitas tributárias. Emprega diretamente, com trabalhos qualificados formais, cerca de 10% dos postos de trabalho e é a área em que os investimentos públicos com pesquisa e desenvolvimento são os mais expressivos do país. Em termos de empregos diretos e indiretos, em toda a cadeia produtiva, o conjunto dessas atividades representa cerca de 9 milhões de trabalhadores inseridos, predominantemente, em atividades intensivas em conhecimento.

Dirceu Raposo de Mello
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