REVISTA FACTO
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Mar-Abr 2008 • ANO II • ISSN 2623-1177
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Um pacto pela saúde no Brasil
//Editorial

Um pacto pela saúde no Brasil

Em 4 de maio de 2007 o governo federal, sem estardalhaços, deu uma cabal demonstração de soberania nacional e, ao mesmo tempo, de respeito às leis, aos acordos internacionais e aos superiores interesses nacionais.

Ao licenciar compulsoriamente patentes relacionadas à fabricação do produto Efavirenz – importante medicamento usado contra a Aids, o governo federal encerrou um longo processo de negociação com a empresa detentora desse título proprietário, que se estendeu por vários meses, ao longo dos quais buscou uma expressiva redução no preço dessa droga visando torná-la acessível a um maior número de pacientes dessa terrível enfermidade. Antes de decretar a licença compulsória, houve a busca de uma licença voluntária para Farmanguinhos, cujas condições propostas foram, por esse prestigioso laboratório público federal, consideradas inaceitáveis.

Não tendo obtido sucesso nessas tentativas de negociação, bem como face aos constrangimentos que Farmanguinhos sofreu quando se dispôs a realizar pesquisas e desenvolvimento de tecnologias com suporte em amostras desse produto, o governo federal não fugiu ao seu dever constitucional de assegurar o acesso universal e gratuito às ações e serviços em saúde para a população por ele assistida e, assim, aplicou um dispositivo previsto na lei nacional e nos acordos internacionais – o licenciamento compulsório das patentes envolvidas por interesse nacional.

Diga-se de passagem, que de há muito havia se passado o prazo legal de três anos, a partir da concessão da patente, para que fosse iniciada sua exploração no país, ou seja, a fabricação local. Aparentemente o detentor da patente preferiu a exploração do país, para além da garantia legal.

Não é descabido lembrar que orientações de governos anteriores estavam colocando como inexistentes ou apenas complementares às normas da OMC os ditames da lei brasileira, convalidando excrescências jurídicas como o estatuto do pipeline. Diversamente dos Estados Unidos, que colocam a lei e os interesses nacionais acima de eventuais interpretações sobre compromissos externos, anteriores governos brasileiros exerceram uma diplomacia nitidamente subserviente ao projeto de globalização dependente, tornando fracas posições que visavam à industrialização do país; que não eram impedidas por TRIPS, mas sim decorreram da ausência de interesse numa soberana política industrial para o país, em especial sob pressões dos laboratórios farmacêuticos internacionais.

É importante rememorar que o pipeline constituiu um mecanismo que não teve qualquer análise técnica pelo INPI, sendo introduzido na legislação de 1996 sem ser discutido pela sociedade brasileira com fundamentação nos interesses nacionais, e que foi formulado pelo governo federal no “apagar das luzes” da tramitação legislativa, sob pressão do governo dos Estados Unidos. O sistema que foi aplicado, devido aos seus efeitos retroativos, proporcionou elevada margem de lucratividade às empresas transnacionais detentoras de patentes em áreas tecnológicas que não eram patenteáveis pelo Brasil – por serem excluídas na legislação anterior.

Tais fatos têm merecido a atenção de nosso Ministério Público e do Poder Judiciário, podendo-se considerar que já está sendo fortemente questionada a constitucionalidade do sistema pipeline. 

Muito se questionou à época o uso do sistema de licenciamento compulsório de patentes previsto em lei, mas de forma sub-reptícia tratado pela mídia como “quebra de patentes”, como se se tratasse de uma ilegítima quebra contratual.

Como nos ensina o prof. Carlos Correa, da Universidade de Buenos Aires, as empresas do primeiro mundo não podem nos questionar quanto ao uso desse sistema visto que os Estados Unidos constituem a nação que apresenta a mais rica experiência em licenciamento compulsório de patentes com o objetivo de corrigir práticas comerciais anticompetitivas e para uso governamental. Em especial o disposto no capítulo 28, parágrafo 1.498 do United States Code, prevê o uso governamental da patente industrial sem autorização do seu titular, e sem qualquer aviso prévio, embora seja devida, em alguns casos, uma indenização financeira a posteriori, desde que suscitada perante a Court of Claims. A descrição desse processo e as respectivas estatísticas desse tipo de uso público sem autorização – que existem desde 1917 deve ser ressaltado – podem ser encontradas na farta literatura técnica produzida pelo prof. Jerome Reichman, da Duke University. As mais de 100 licenças compulsórias listadas por Carlos Correa, uma vez somadas às 290 hipóteses de uso público não-governamental documentadas por Jerome Reichman, excedem em 20% o total de licenças compulsórias emitidas por terceiros países, fora Canadá, em toda a história da propriedade intelectual, diz o jurisconsulto brasileiro Denis Barbosa.

Nesse cenário, desde o primeiro momento a ABIFINA se posicionou fortemente em apoio ao governo federal quando foi considerada a hipótese de se licenciar compulsoriamente o produto Efevirenz, não somente devido à legitimidade de iniciativa adotada, como também considerando o seu elevado mérito.

No caso do Efavirenz, a patente foi registrada por pipeline – instrumento de constitucionalidade bastante questionável, como outras 1.196 depositadas no INPI no primeiro ano após a promulgação da Lei de Patentes em 1996. Esse fato contribuiu significativamente para que, sem um expressivo aumento do número de unidades farmacêuticas vendidas, o faturamento do mercado farmacêutico brasileiro tivesse aumentado de R$ 10 bilhões em 1996 para mais do dobro 2007, nitidamente influenciado pela ação de um monopólio cuja legitimidade é no mínimo controversa. E, ainda mais, que o balanço de pagamentos do país para fármacos e medicamentos – já deficitário em 1996 – quintuplicasse negativamente de valor de lá para cá.

A decisão adotada pelo governo federal visando licenciar compulsoriamente Efavirenz claramente não se constituiu num arroubo ufanista de nacionalidade, nem foi uma medida tomada sem uma profunda reflexão sobre seu significado, conseqüências e compromissos. Em seu contexto inicial foi analisada a disponibilidade do produto no mercado internacional e a capacitação técnica dos laboratórios oficiais e do setor produtivo privado de fármacos instalado e operando no país.

Assim, por iniciativa de Farmanguinhos e contando com o apoio das entidades empresariais do setor articuladas pela ABIFINA, foi aberto um processo de pré-qualificação de empresas produtoras de farmoquímicos no país. Foi instaurada uma verdadeira “banca examinadora” com todos os candidatos participando de um verdadeiro mutirão tecnológico e produtivo para atender a um dos requisitos essenciais da lei brasileira relativa à licença compulsória: o licenciado deveria produzir no país em menos de um ano para não ficar sujeito às possíveis ações visando cassar a licença compulsória.

O governo cuidou, portanto, para além da importação no primeiro ano, de se preparar para a produção local, não apenas do produto acabado, mas também para a fabricação no país do princípio ativo objeto da licença compulsória.

Depois de terem sido realizadas auditagens técnicas nas unidades produtivas privadas de fármacos anti-retrovirais em operação industrial no Brasil, foi constatado ser possível, em um ano, ter o princípio ativo produzido no país para atender à demanda dos laboratórios oficiais através da contratação dos serviços de fabricação dos princípios ativos requeridos para a formulação de Efavirenz – para dentro de mais seis meses iniciar a produção do produto acabado. Tanto Lafepe como a empresa Cristália já possuíam registro do genérico do Efavirenz (200 mg), o que pode diminuir o tempo necessário para procedimentos produtivos e registro na Anvisa do produto acabado, na apresentação mais usada, de 600 mg. De qualquer modo, até outubro do corrente ano, as formulações de Farmanguinhos e do Lafepe deverão estar com seus testes concluídos e registrados na Anvisa. E, o que é mais importante, com qualidade equivalente e, num primeiro momento, a um preço unitário do produto da ordem de 50% daquele oferecido pela empresa detentora da patente, com tendência de queda acentuada nos anos seguintes, com o avanço da internalização do desenvolvimento do farmoquímico.

O desafio para as três empresas selecionadas para a produção do princípio ativo (Cristália, Globe e Nortec) foi grande, mas houve uma integral disposição de todas as partes envolvidas – constituindo-se num verdadeiro Pacto pela Saúde no Brasil para se atingir essa meta no prazo fixado. Nesse cenário cabe ser destacado um aspecto de fundamental importância para as políticas públicas na área da assistência farmacêutica representado pela modalidade de contratação dos processos de fabricação do princípio ativo pelos laboratórios oficiais nas empresas privadas instaladas no país e que operam nessa área há bastante tempo. A contratação de tais serviços permite a fiscalização permanente dos processos produtivos, seus insumos e produtos, assegurando-se assim a rastreabilidade das matérias-primas utilizadas para a fabricação dos medicamentos pelos laboratórios oficiais, que constitui a maior garantia de qualidade dos produtos daí decorrentes. E, não menos importante, ficam criadas as condições para a melhoria dos processos industriais e a inovação tecnológica, pois o Brasil tem a base técnica e a capacidade industrial instalada, mas elas não vinham sendo aproveitadas por falta de uma efetiva visão governamental nessa área.

As três empresas nacionais associadas da ABIFINA, Cristália, Nortec e Globe, atenderam plena e antecipadamente o cronograma de trabalhos definido pelo ministro da Saúde, fabricando e colocando à disposição de Farmanguinhos e de Lafepe o princípio ativo requerido para suprir toda a demanda do produto Efavirenz nas quantidades requeridas para o mercado brasileiro. Foi desenvolvido o processo de fabricação e já está sendo produzido localmente o princípio ativo desse anti-retroviral de tamanha relevância para a saúde pública brasileira, em procedimento de parceria de empresas privadas com laboratórios públicos, devendo ser destacado o fato de se tratar de processo e de produto que se encontravam sob patente industrial até menos de um ano atrás e que não ocorreu qualquer transferência tecnológica entre o titular da patente e os fabricantes nacionais.

As empresas industriais fabricando localmente produtos para a área da saúde, sejam produzindo fármacos, medicamentos ou equipamentos, bem como provendo os indispensáveis serviços requeridos pelo poder público, respondem afirmativamente aos desafios a que são submetidos pelo Poder Executivo, sempre quando tratadas em situação de isonomia tributária e de qualidade quanto ao produtor estrangeiro concorrente. Estamos certos de que a nova visão do complexo produtivo e de serviços para a área da saúde pública no Brasil, agora adotada pelo Ministério da Saúde, atende plenamente aos mais relevantes interesses nacionais.

Nelson Brasil de Oliveira
Nelson Brasil de Oliveira
Vice-presidente de Planejamento Estratégico da ABIFINA.
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