De uma forma realista e racional, os cuidados com a saúde humana e a preservação do meio ambiente constituem hoje requisitos fundamentais associados a quaisquer programas de desenvolvimento industrial de um país que tenha pretensões de participar competitivamente do mercado internacional. A constatação desse fato se verifica, nitidamente, na aceleração dos processos emissores das novas regras sanitárias e antipoluentes que estão surgindo em organismos governamentais – regionais e internacionais, sob forte pressão de toda a sociedade.
A indústria química, que sempre foi apresentada como a vilã nesse cenário, obviamente é o setor industrial mais visado pela nova onda normativa que vem sendo implantada sob a liderança dos países mais desenvolvidos. Pela sua relevância cabe ser destacado que os modernos conceitos pertinentes à periculosidade ou insalubridade, que são inerentes a alguns produtos químicos, não se esgotam no simples estabelecimento de especificações técnicas relativas aos produtos químicos em si; em realidade adentram em rígidos requisitos técnicos quanto ao seu desempenho nas suas mais distintas aplicações, inclusive em situações onde é bastante reduzida a participação dos produtos químicos na composição da mercadoria colocada no mercado.
A química está presente em, praticamente, todos os produtos utilizados no dia-a-dia pelo homem. As residências são pintadas com dispersões de produtos químicos, a química se encontra nas resinas plásticas usadas no recobrimento de pisos, de esquadrias e janelas, nos componentes para eletrodomésticos, automóveis, computadores e brinquedos, no couro dos calçados, na fibra ou nas cores com que vestuários são tingidos. Também na embalagem usada em alimentos, quando não no próprio conservante nele inserido, nos produtos de higiene doméstica, nos medicamentos utilizados pelo homem para recuperar a saúde ou no defensivo agrícola e animal para elevar a produtividade do campo. Inexoravelmente, o progresso de uma sociedade requer o uso de produtos químicos em mercadorias colocadas para consumo humano, mas seu comércio está sendo cada vez mais regulado pelo Estado, para que prevaleçam os superiores interesses da coletividade, em termos de saúde e meio ambiente.
O registro sanitário de medicamentos e seus insumos, alimentos e produtos agroquímicos já vem sendo realizado sobre a produção nacional instalada no Brasil há muitos anos na forma que ocorre em países avançados, porém, sobre os produtos similares importados a fiscalização tem sido feita com maior leniência administrativa. Realmente, o produto final a que o consumidor tem acesso é cercado de cuidados especiais, porém suas matérias-primas, princípios ativos e seus processos laborais não são considerados no marco regulatório brasileiro, em especial no que se refere aos insumos importados. Essa é uma importante fragilidade encontrada nesse sistema que, além de propiciar danos ao consumidor local, certamente nos coloca na contramão daquilo que é requerido para nossa participação no mercado global.
A propósito, diz-se que o Brasil carece de recursos administrativos para dar cumprimento a essa indispensável tarefa fiscalizadora, mas a verdade é que no fundo a carência é preponderantemente de natureza financeira que poderia ser coberta via cobrança de taxas bem mais elevadas para os fabricantes localizados no exterior do que aquelas atribuídas às indústrias locais, com o objetivo de cobrir os pesados encargos com deslocamentos e hospedagens dos funcionários governamentais, bem como para a contratação de especialistas que existem no mercado de RH. Afinal, as empresas localizadas no exterior têm que pagar o preço requerido para se aproveitar desse relevante patrimônio nacional que é o mercado nacional – como definido pela nossa Constituição, e à semelhança do que já ocorre no Primeiro Mundo.
Por oportuno e para ilustrar, cabe destacar que o grande fornecedor de insumos químicos ao Brasil – a China continental – geralmente é representada aqui por agentes comerciais, e não pelos seus reais produtores. Empresários nacionais da área farmoquímica que, na ausência da Anvisa, passaram a realizar auditorias técnicas em empresas chinesas estão encontrando sérios problemas nessa iniciativa, como, por exemplo, a empresa que se apresenta no Brasil como fabricante é apenas um revendedor de produtos fabricados por diversas indústrias chinesas, com distintas origens e qualificações técnicas, num “mix” de produtos químicos com diferentes composições qualitativas, inclusive altamente inconvenientes e sem uma rastreabilidade assegurada. Apresentam uma fábrica “inspecionável”, ou seja, uma planta industrial bem arrumada para inspeções destinadas ao registro sanitário e que serve, apenas, como uma vitrine ou como uma fábrica virtual – inexistente, pois que as mercadorias ofertadas resultam de um catado de produtos com qualidades questionáveis, inclusive alguns com péssimas qualidades, que são recolhidos em outras diversas e dispersas unidades fabris espalhadas naquele grande país. Depoimentos empresariais divulgados informam que isso constitui prática muito comum na China – inclusive o tema foi objeto de reportagem do New York Times, onde o Brasil foi especificamente apontado como um dos países que mais adquiriam produtos chineses rejeitados pelo Primeiro Mundo.
Ocorre que o cadastro do fabricante e a validação, certificação e fiscalização sanitária da indústria no exterior não podem constituir um ônus do empresário nacional como vem ocorrendo, pois que representam um custo e uma responsabilidade que têm que ser assumidos pelos órgãos de regulação sanitária do país. Não se trata de uma tarefa fácil, requer equipes qualificadas, deslocamentos, visitas aos locais das fábricas, enfim, a realização de auditorias completas que, certamente, servirão para reprovar a maior parte dos princípios ativos para medicamentos que vêm sendo importados, especialmente pelo poder público no Brasil, na base exclusiva do “menor preço de face”.
Uma nova era para o sistema regulatório dos produtos destinados à área da saúde pública está surgindo no país, sob a competente batuta do ministro Temporão ao encaminhar – com uma visão estratégica de longo prazo sobre o complexo produtivo e de serviços para a saúde – uma nova orientação para as compras governamentais de fármacos e medicamentos destinados a atender a programas de saúde pública em seus diversos níveis, mas que certamente influirá também em tomadas de decisão na área privada, dado o elevado interesse nacional em jogo. E o renovado mandato do diretor-presidente e adjunto da Anvisa nos permite antecipar com bastante otimismo o por vir.
O REACH está chegando em 2008 para valer, e quem não se adequar às suas novas regras – como seria o caso do uso dos produtos catados na China – certamente não poderá utilizá-los como parte da cadeia produtiva de drogas ou mercadorias exportadas para a Europa. REACH é a sigla de um novo Sistema de Registro, Avaliação e Autorização de Produtos Químicos, legislação emitida pela Comunidade Européia e que passa a vigorar a partir de junho deste ano (2008), aplicável a todos os 27 países europeus. Isso significa que produtos ou mercadorias para serem exportados para a Comunidade Européia deverão apresentar não somente especificações técnicas do produto comercializado em si, mas também um completo dossiê técnico sobre os processos, os insumos e as matérias-primas utilizadas na sua manufatura, permitindo assim ao órgão sanitário central da CEE realizar uma completa avaliação sobre os perigos de danos à saúde humana ou de agressão ao meio ambiente, o que requer uma perfeita rastreabiliade da cadeia produtiva da mercadoria importada.
Trata-se de uma nova visão para o controle sanitário e ambiental de produtos colocados no mercado que deverá se internacionalizar brevemente e que, certamente, veio para ficar. Pelos seus meritórios objetivos temos que apoiar tais medidas, a despeito da conveniência de nos manter atentos e vigilantes. Cuidados com a saúde humana e o meio ambiente, sempre que desprovidos de viés ideológico ou de irracionalidades, constituem avanços que devemos louvar, ainda que com a devida cautela quanto aos seus excessos ou eventuais desvios para aquilo que se denominam barreiras econômicas ou técnicas ao comércio internacional.