Se alguém sofre lesão ou ameaça a direitos a questão poderá ser apreciada pelo Poder Judiciário. Esse conhecimento é próprio de nossa civilização.
Sabemos, também, que, no dia-a-dia, as disputas judiciais envolvem sempre duas pessoas. Os estudantes de direito bem conhecem os romanos Caio e Tício que sempre figuram nas questões de prova como as únicas partes litigantes.
Mas a era da sociedade de massas traz demandas complexas envolvendo muitas outras pessoas além das duas partes, autor e réu, no processo tradicional.
Outros personagens participam de alguma forma das relações criadas pelos fatos sociais. Podem até ingressar nos processos, garantidos pelo direito constitucional de acesso à justiça.
Disto resulta a ampliação dos feitos para alcançar esses personagens e sua voz nas demandas. É que todos têm o dever de dizer ao juiz o que sabem sobre a causa, porque ninguém se exime do dever de colaborar com o juiz para o descobrimento da verdade, segundo a lei.
É o que comenta o jurista José Carlos Barbosa Moreira:
“… de certa maneira, o que a lei indica é isso: que o terceiro que saiba de fatos relevantes deve informá-los.”1
Porque as decisões judiciais têm repercussão que ultrapassam as partes que contendem em um processo inúmeras formas de intervenção de terceiros são admitidas no direito processual.
É, nesse momento, que surge o chamado amicus curiae, o amigo da corte judicial ou o colaborador da justiça.
O amicus curiae é um instrumento moderno de aperfeiçoamento da administração da justiça. É uma terceira pessoa que apresenta esclarecimentos no processo em que as partes litigam em busca de solução para a controvérsia apresentada ao juiz.
A imparcialidade do amicus curiae é associada à idéia de interesse institucional.
A origem é antiga. O amicus curiae começa na Inglaterra e tem participação cada vez maior no processo judicial em que o juiz passa a ter mais poder de decidir e procurar as fontes de esclarecimento da causa para julgar e distribuir justiça na sociedade de massa.
É como observa Gustavo Binenbojm:
“…o círculo de intérpretes da Lei Fundamental deve ser elastecido para abarcar não apenas as autoridades públicas e as partes formais nos processos de controle de constitucionalidade, mas todos os cidadãos e grupos sociais que, de uma forma ou de outra, vivenciam a realidade constitucional.”2
O amicus curiae aparece, pela primeira vez no sistema jurídico brasileiro, na lei que criou a Comissão de Valores Mobiliários – CVM, para que a autarquia apresentasse esclarecimentos em tema de mercado de ações e outros títulos.
Depois, outras leis passaram a admitir expressamente essa manifestação de amicus curiae pelo Cade e INPI.
Mas o amicus curiae ganhou relevância, em nosso País, com a possibilidade da intervenção, de pessoas ou entidades, na ação direta de inconstitucionalidade no STF – Supremo Tribunal Federal.
E as decisões judiciais têm considerado oportuna essa manifestação e não fazem depender de lei a presença do amicus curiae.
É o dever de esclarecer o juiz sobre a questão em julgamento pela chamada intervenção espontânea, na expressão de Scarpinella que se refere ao tema do interesse para atuar como amicus curiae, em obra clássica sobre a matéria:
“Para nos livrarmos das amarras de outrora, o “assistente”, o “fiscal da lei”, o “perito” (mesmo as “testemunhas”), todos esses sujeitos do processo podem (e devem) abrir espaço para outra figura, outro sujeito, que não usurpa o seu papel, que não pretende colocar-se nos seus lugares, ocupando-os e excluindo seus tradicionais titulares. Sua função é outra, diversa. Mas desempenha função que as complementa, que se faz necessária para que vozes sem boca, ao menos no plano do direito processual, possam ser ouvidas, devidamente representadas, em prol do aprimoramento e aprofundamento da qualidade da cognição jurisdicional. Porque o juiz não é mais só a boca da lei. E sua decisão já não afeta, queira ou não queira, somente aqueles poucos dois que se encontram na sua frente.
É este, acreditamos, o ambiente em que deve ser recepcionado o amicus curiae. Bem-vindo, amicus curiae, ao nosso sistema processual civil.” 3
É nesse contexto que a ABIFINA tem atuado como amicus curiae. Traz ao magistrado o conhecimento que tem como entidade classista de âmbito nacional de defesa da indústria de química fina no Brasil. E a jurisprudência majoritária já admite o pronunciamento da ABIFINA.
Recentemente, a primeira decisão judicial que afirmou essa intervenção espontânea relevante:
“assim, dentro de uma perspectiva democrática, plural e aberta da interpretação constitucional, e sendo a ABIFINA uma entidade classista de âmbito nacional, representante de grandes e médias indústrias que atuam na área da química fina, em especial farmoquímica, farmacêutica e agroquímica, trazendo ao Juízo elementos fáticos de suma importância para o deslinde da causa, entendo plenamente possível a sua intervenção como amicus curiae no feito, pelo que ora a admito.”4
Outras decisões foram também proferidas em julgamentos na segunda instância da Justiça Federal. São pronunciamentos no sentido de que a ABIFINA tem representatividade e contribui para a discussão do interesse público suscitada nos autos dos feitos em tema de direito da propriedade industrial.5
Tais decisões têm sido proferidas em processos versando acerca do direito da propriedade industrial, especialmente quanto à chamada “extensão de prazo de patentes” e questões relativas à violação as normas legais patentárias.
É a demonstração de que a via jurídica – do amicus curiae – pode e deve ser utilizada para deslindar direitos que repercutem em toda a sociedade. São terceiros que trazem espontaneamente esclarecimentos institucionais e melhoram a justiça.
*Advogada
1- BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus Curiae no Processo Civil Brasileiro. Um terceiro enigmático. São Paulo, Saraiva, 2006, pág. 635. In “Provas atípicas”, p.119, Revista de Processo V. 76, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994m p. 115/126.
2- BINENBOJM, Gustavo, “A democratização da jurisdição constitucional e o Contributo da Lei n.º 9.868/99”, in O Controle de Constitucionalidade e a Lei n.º 9.868/99, Org. Daniel Sarmento, Ed. Lumen Júris, 2001, pág. 149.
3- BUENO, Cássio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. São Paulo: Saraiva, 2006, pg. 511.
4- Nº 2005.51.01.524387-0, em trâmite perante a 37ª Vara Federal da Comarca da Capital – estado do Rio de Janeiro, conforme sentença publicada no dia 8/11/2006
5- Ap.Civ.n°s.2005.51.01.512374-8 e 2004.51.534005-6, 2ª.T, TRF-2ª.