No Encontro Empresarial de Biodiversidade Brasileira, promovido pela Abifina em parceria com a Firjan, foram discutidos caminhos para uma melhor articulação entre o poder público e o setor privado em questões relacionadas ao aproveitamento da biodiversidade, particularmente na produção de fitoterápicos. O evento contou também com a presença do sociólogo Hélio Jaguaribe, um crítico implacável do “baixo padrão ético” da política brasileira, que lamentou a incapacidade dos governantes das últimas décadas de implementar e sustentar políticas desenvolvimentistas que tirem o País da estagnação.
Fitoterápicos e conhecimento tradicional
Glauco Villas Boas, coordenador do Centro de Produtos Naturais da vice-diretoria de Ensino, Pesquisa e Inovação do laboratório Farmanguinhos, foi o representante do setor público no Encontro. Ele destacou a importância da articulação do Estado com empresas privadas visando o desenvolvimento tecnológico e a implantação de unidades produtivas para aproveitamento dos recursos da exuberante biodiversidade brasileira.
Um importante fato comentado por Villas Boas foi a insuficiente exploração do potencial dos fitoterápicos no Brasil, ao contrário do que acontece nos EUA e na Europa. “Esses medicamentos proporcionam, além dos benefícios à saúde individual, uma grande economia às políticas de saúde pública dos países desenvolvidos”, afirmou o pesquisador. Ele ressaltou que o uso de fitoterápicos no sistema de saúde de alguns países da Europa, principalmente na Alemanha, é expressivo não só no tratamento de doenças leves, em que tradicionalmente esse tipo de terapia é eficaz, mas também no de doenças mais graves como a depressão.
Os fitoterápicos constituem uma janela de oportunidades para a indústria farmacêutica e envolvem questões patentárias diretamente relacionadas à proteção da biodiversidade. Segundo Villas Boas, no Brasil as dificuldades de acesso à pesquisa nessa área inibiram o ímpeto da indústria farmacêutica de investir na prospecção de novas moléculas de origem vegetal. Além disso, levaria anos para classificar todas as espécies vegetais e um tempo inestimável para determinar com precisão o potencial molecular que existe na nossa flora. “No processo de validação de um medicamento fitoterápico são necessárias a separação e a identificação das moléculas, e nesse processo é comum descobrir princípios ativos ainda não estudados, bem como novos usos para substâncias já conhecidas”, explica o representante de Farmanguinhos.
Para facilitar a expansão do segmento de fitoterápicos, Glauco Villas Boas sugere que o ideal seria sua validação a partir do uso tradicional, o que permitiria “chegar a um produto num tempo relativamente curto e a um custo relativamente barato, aumentando o acesso da população brasileira aos medicamentos, sobretudo em áreas extremamente carentes”. Em sua opinião, o conhecimento tradicional deve integrar a cadeia que leva à inovação e precisa ser estabelecido legalmente em diferentes níveis de complexidade, para que conte com efetiva proteção e reverta em benefício do País. “Os fitoterápicos seriam assegurados e garantidos para a indústria nacional, de preferência.”
O representante de Farmanguinhos vai além e concebe a utilização do poder de compra do Estado em favor do desenvolvimento nacional de fitoterápicos. Ele propõe que o Sistema Único de Saúde (SUS), que é o maior comprador de remédios do Brasil, incorpore a fitoterapia, até como forma de reduzir suas incertezas frente aos interesses da indústria farmacêutica. “Cabe ao SUS definir que o desenvolvimento de tais medicamentos é uma necessidade do Estado”, sublinha.
Villas Boas ressaltou que o Decreto nº 5.813, que estabelece a política nacional de plantas medicinais e fitoterápicos, já faz parte da agenda do Ministério do Desenvolvimento e de alguns setores do Ministério da Saúde e do BNDES, mas seria recomendável que o setor produtivo assumisse uma liderança nesse processo. Otimista, ele afirma que o governo está empenhado em conceber programas para garantir “o acesso da população aos medicamentos, a produção de novos medicamentos para a melhoria da saúde, a criação de novos mercados de trabalho e a valorização do conhecimento como um todo – não só o científico, mas o vasto conhecimento que existe no setor produtivo e que não é dividido, não é repassado, não é discutido”.
Tesouro pouco explorado
Segundo o diretor-presidente do laboratório nacional Hebron, Josimar Henrique da Silva, é preciso desenvolver uma visão estratégica dos interesses nacionais buscando o desenvolvimento sustentado da biodiversidade brasileira. “Dois anos atrás, um ministro associado ao núcleo de assuntos estratégicos do governo dizia: devemos entender e dominar, imediatamente, a biodiversidade brasileira. Eu acrescentaria: para que continuemos a chamá-la de biodiversidade e de brasileira.”
A pesquisa e a produção de medicamentos fitoterápicos no Brasil a partir de matéria-prima da biodiversidade brasileira, com pesquisadores brasileiros e por empresas brasileiras é considerada muito incipiente pelo diretor da Hebron. Ele afirma que, embora gestores públicos de saúde no Brasil reiterem constantemente que os medicamentos fitoterápicos são uma importante estratégia para melhorar a saúde dos brasileiros e ampliar a inclusão social, o discurso não é posto em prática. Segundo Silva a Política Nacional de Plantas Medicinais, e Fitoterápicos foi elaborada sem se ouvir o setor industrial, que é o efetivo parceiro nos investimentos em pesquisas e o principal motor de colocação de produtos à disposição dos médicos e da população. “Como o governo pode fazer uma política de medicamentos fitoterápicos para o Brasil sem considerar a experiência e a capacidade daqueles que estão vinte anos na frente, identificando, pesquisando e produzindo medicamentos?”
O empresário está convicto de que hoje já existe no Brasil uma consciência do custo e do tempo que se leva para pôr um novo medicamento no mercado, ou seja, da inviabilidade de acompanharmos o ritmo dos grandes laboratórios multinacionais. Portanto, temos que encontrar nossos próprios caminhos para disponibilizar medicamentos à população. “Há pouco mais de uma década” – conta Silva – “universidades, pesquisadores e indústrias brasileiras iniciaram uma cooperação na pesquisa de princípios ativos em plantas que vem mostrando excelentes resultados. O Hebron foi pioneiro nesse contato e atualmente há inúmeros projetos nessa direção.” Ele acredita que foram iniciativas como estas que levaram o governo a dar mais atenção às indústrias nacionais inovadoras na área farmacêutica. “Nos últimos quatro anos tivemos uma Política Industrial, a montagem de um Fórum para a Cadeia Produtiva de Fármacos, Medicamentos e Biotecnologia, um programa de incentivo à inovação tecnológica e uma Lei de Inovação.”
Porém, o empresário assinala que a má distribuição de renda e a alta carga tributária constituem fatores impeditivos ao desenvolvimento da indústria farmacêutica nacional. “Se, por um lado, o País oferta no mercado 13.300 apresentações de medicamentos, novos lançamentos simultâneos aos da Europa e EUA, e a indústria nacional produz 75% dos produtos demandados, com uma infra-estrutura de farmácias, hospitais e distribuidoras que levam os produtos a todo o território brasileiro, por outro lado apenas 19% dos domicílios, com renda acima de dez salários, são responsáveis por 39% do consumo”, contabiliza o diretor do Hebron, lembrando que 50% da população não possuem renda suficiente para consumir qualquer medicamento, apesar dos preços nacionais serem dos mais baixos do mundo.
O fato de o governo federal ter sancionado políticas públicas para incentivar o setor de fármacos e medicamentos não garante, no entanto, o sucesso dessas iniciativas. A atuação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por exemplo, tem sido freqüentemente desestimulante para o objetivo governamental de posicionar esse setor como uma das quatro bases de retomada do desenvolvimento industrial. “Entendemos que não se trata da Anvisa como instituição, nem de seu corpo de pessoal, mas de dirigentes que desconhecem por inteiro os processos pelos quais um produto passa até chegar ao seu momento de inscrição na Anvisa e de manutenção no mercado” – lamenta Silva.
Existe uma tendência por parte da Anvisa de subqualificar os medicamentos fitoterápicos, como se eles pertencessem a uma categoria inferior à dos remédios alopáticos convencionais, explica o diretor do Hebron. Em conseqüência, a própria validade da pesquisa brasileira e sua conformidade com as normas científicas também são questionadas. “A Anvisa anda na contramão da história recente do País, da política industrial e da lei de inovação, dois dos mais adequados instrumentos que o Brasil produziu para se desenvolver e competir mundialmente no século 21”, sentencia o empresário.
O Hebron vê o futuro da indústria nacional de medicamentos ao mesmo tempo com otimismo e preocupação. “Hoje, no início do século 21, o conhecimento é o motor do desenvolvimento econômico, através da inovação tecnológica. Para estar entre as nações autônomas o Brasil precisa agir rápido, incluindo mais cidadãos na era do conhecimento”, alerta Josimar Silva. “Nas últimas décadas, ocorreu uma revolução nas expectativas de longevidade, qualidade de vida e bem-estar a partir do conhecimento gerado no setor farmacêutico. Hormônios, antibióticos, antivirais, seqüenciamento do genoma, tudo isso tem a participação da indústria. E há muito espaço para os cientistas brasileiros nessa área, desde que as políticas públicas e o interesse do Estado permitam que empreendedores, investidores, pesquisadores e a sociedade se movam nessa direção.”
Na opinião do empresário, o País seria beneficiado com a criação de uma política específica para fitoterápicos associando-os à biodiversidade brasileira. E mais ainda com o aperfeiçoamento dos instrumentos da política industrial para o setor farmacêutico e com o estímulo à aproximação entre empresas, universidades e centros de pesquisas, como já prevê a Lei de Inovação. “Dessa forma, poderemos tranqüilamente nos destacar no mercado externo em fitoterápicos, um segmento hoje dominado pela Alemanha, França e Índia” – conclui Silva.
Desenvolvimento e restauração ética
Nenhum país do mundo apresenta mais extraordinária discrepância entre suas imediatas potencialidades e seu efetivo nível de desempenho do que o Brasil. Apesar de possuir o quinto maior território do mundo, em sua maioria de terras utilizáveis, e também a quinta maior população, economicamente ocupa o 15º lugar, abaixo de países como China, México, Coréia do Sul e Índia. A pergunta que o cientista político Hélio Jaguaribe tentou responder durante o Encontro Empresarial é justamente por que um país quantitativamente tão dotado de recursos naturais e humanos apresenta desempenho tão modesto.
Segundo ele, as duas principais causas são o baixo padrão ético e o alto grau de deseducação que caracterizam o Brasil. Apenas um terço da nossa população apresenta níveis de instrução comparáveis aos de um país do sul da Europa. O terço inferior tem níveis equivalentes aos dos mais modestos países afro-
asiáticos, e o terço restante se aproxima significativamente do terço inferior. Segundo Jaguaribe, “a sorte é que, devido ao tamanho da população brasileira, o terço superior, com 60 milhões de pessoas, equivale à população de um país como a França”.
O fato de dois terços da população se encontrarem em estado de total deseducação se deve, por sua vez, ao tradicionalmente baixo padrão ético do País. “O oportunismo das elites após a abolição dos escravos e a posterior migração dessa população rural para os grandes centros urbanos inundaram as cidades com gente inapta para outro tipo de serviço que não o braçal, gerando os imensos anéis de marginalidade atuais. Com a recente penetração do narcotráfico, esses anéis se tornaram imensos exércitos de reserva do crime, os quais as autoridades de segurança pública se tornaram incapazes de combater. Como um contra-ataque ao oportunismo praticado pela elite, se expandiu nas massas a cultura da malandragem e a indiferença ao crime, reduzindo a consciência ética a setores educados da classe média” – analisa o cientista.
Para Hélio Jaguaribe, o problema atual do Brasil não se restringe apenas à necessidade de retomar o caminho perdido do desenvolvimento, e sim, adicionalmente, o de recuperar, no conjunto do País, satisfatórios padrões éticos médios. “A história revela que os povos exitosos foram, em todas as épocas, os que se pautaram por consistentes padrões éticos” – argumenta. “Na história independente do Brasil, prevaleceram consistentes padrões éticos do Segundo Reinado aos anos 60, afrouxando-se a moralidade pública a partir das últimas décadas do século anos XX”. Para Jaguaribe, a restauração de confiáveis padrões éticos para o conjunto da população depende, por um lado, da ocorrência de manifestações contagiantes de exemplaridade ética a partir da cúpula e, por outro lado, de eficazes esforços de radical correção dos excessivos desequilíbrios sociais.
A estagnação da economia decorre, na opinião do cientista, da incapacidade de nossos dirigentes de formular um projeto desenvolvimentista fiscalmente equilibrado. Os principais fatores que imobilizam o País são as altas taxas de juros, a sobrevalorização artificial do real e o excessivo gasto público. “Desde a década de 80 o Brasil vem apresentando um crescimento pífio se comparado a outros emergentes” – ele comenta. “Se por um lado é necessária a manutenção de uma política antiinflacionária, por outro lado este não pode ser o objetivo supremo da economia, sob pena de nos condenarmos à estagnação. Existem maneiras de promover desenvolvimento acelerado com taxas mínimas de inflação, como ocorre na China e na Índia. O que importa é adotar e implementar um competente projeto de desenvolvimento. Isto pode e deve ser feito no Brasil” – afirma.
Jaguaribe tem o cuidado de recusar uma estigmatizante associação entre pobreza e criminalidade. “A pobreza não gera, automaticamente, formas ilícitas de apropriação de bens, assim como a restrição de oportunidades não produz formas ilícitas de oportunismo, em sociedades onde o padrão ético impera. É irrecusável, portanto, a ocorrência de uma relação de causalidade circular entre elevados padrões éticos e prosperidade social” – esclarece.
Para Hélio Jaguaribe, o primeiro problema a ser resolvido na prática é a contenção das migrações rurais, para em seguida se adotar um programa de reurbanização e assistência aos deseducados urbanos, “que envolve complicadas questões de emprego, educação e saúde”. Ele afirma, porém, que as autoridades e a sociedade precisam antes de tudo admitir que o mundo civilizado perdeu a guerra da droga. “Assim como ocorreu com a ‘prohibiton’ americana do álcool, que gerou terríveis gangues como a de Al Capone, a criminalização da droga está gerando bandos ainda piores e mais poderosos”. Em sua opinião, é necessária uma ampla e profunda revisão do regime penal nessa área, submetendo-se a matéria a uma objetiva análise de custo-benefício relativa à manutenção do atual regime de criminalização das drogas ou à alternativa de uma liberdade vigiada, como a que prevalece para bebidas alcoólicas. “Estou pessoalmente convencido de que os malefícios decorrentes das incontroláveis máfias do narcotráfico são incomparavelmente superiores aos que possam resultar de uma liberação vigiada do uso da droga, acompanhada de intensa divulgação dos malefícios de seu consumo” – declarou, acrescentando que “importaria inserir a liberação da droga num regime multinacional de que participassem, pelo menos, os países do Mercosul”.
Voltando à questão mais ampla da recuperação ética, Jaguaribe acredita que ela depende, por um lado, da recuperação da autoconfiança dos brasileiros e de uma nova mobilização da sociedade por um projeto nacional dotado de poderoso apelo coletivo, a partir de uma liderança pública revestida de respeitabilidade ética. Por outro lado, depende da medida em que esse novo projeto atenda, efetivamente, às necessidades das grandes massas desvalidas e abra amplas oportunidades de incorporação dessas massas à cidadania nacional. “A eleição de um ex-torneiro mecânico para a presidência da República, em 2002, teve um impacto extremamente favorável, mostrando um grau de abertura social no Brasil que não se suspeitava, e fortalecendo significativamente as instituições democráticas.”
Entretanto, na avaliação de Hélio Jaguaribe, se o primeiro mandato de Lula revelou sua extraordinária aptidão para um bom relacionamento internacional do País, ele foi extremamente modesto do ponto de vista doméstico. “Sua política social, embora dinâmica, teve caráter meramente assistencial. Minorou significativamente, com a Bolsa Família, os mais imediatos efeitos da miséria, mas não contribuiu para erradicá-la nem para iniciar a correção dos fatores que a provocam” – avalia. Isto além da “fatal opção” por um monetarismo neoliberal que, “em troca da tranqüilidade decorrente do controle da inflação e do correspondente apoio do setor financeiro, perpetuou a estagnação em que o País já se encontrava”.
Jaguaribe faz projeções pessimistas. “Este início do segundo mandato de Lula não inspira, lamentavelmente, um prognóstico favorável. A preservação, no comando do Banco Central, do mesmo presidente a que se deve o neoliberalismo monetário do primeiro mandato aponta na direção da manutenção dessa estagnante orientação. As modestas medidas previstas no PAC para a suposta dinamização da economia brasileira terão efeitos muito reduzidos, inseridos nesse contexto do neoliberalismo que se pretende preservar.”
Para Hélio Jaguaribe, a esperança é saber que os países têm uma extraordinária resiliência que leva muitos, como China e Índia, a atravessar longuíssimos períodos de estagnação e declínio para, em seguida, manifestarem surpreendente renascimento. “O Brasil não deverá ser uma exceção a essa persistente resiliência que tantos países exibem. Mas, não havendo reação ao atual estado de coisas, a situação tenderá a se deteriorar ainda mais, particularmente no que se refere aos padrões médios de ética da sociedade brasileira” – conclui.