O recuo da discussão do registro de produtos agroquímicos para o terreno estéril do “tudo ou nada” e o agravamento dos problemas de financiamento do agronegócio brasileiro ameaçam o futuro da indústria doméstica de defensivos agrícolas.
Na década de 90, o agronegócio brasileiro deu um salto de qualidade e quantidade que ficará registrado na história: entre a safra de 1990/91 e a de 1999/2000 a produção de grãos cresceu 40,3%, evoluindo de 57,9 milhões de toneladas para 83,03 milhões de toneladas colhidas, mesmo sem acréscimos significativos na área plantada. Ou seja, foi a produtividade que aumentou, e entre os fatores que contribuíram para este excelente desempenho destacam-se os avanços tecnológicos na produção de sementes e no controle químico das pragas agrícolas.
Em contraste com este cenário, a indústria nacional de defensivos vem encolhendo proporcionalmente desde o início da década passada. A balança comercial do setor, que era superavitária para o Brasil até 1992, dez anos depois já era deficitária em US$ 1,5 bilhão. E essa tendência tem se acentuado. Uma ampla desnacionalização desse mercado, agravada desde o início desta década por questões institucionais, como a política de registro de produtos, e pela crise que atinge a agricultura nos últimos dois anos, ameaça a sobrevivência das indústrias brasileiras.
O “vilão da história”
Como em todo assunto politicamente sensível, o discurso dominante com relação à crise da agricultura consiste em “achar os culpados”. Governo e lideranças rurais têm evitado encarar o problema na sua real complexidade. Desconsiderando-se a explosiva combinação de fatores como o real apreciado, os juros altos, a escassez de crédito, a queda do preço internacional da soja e do milho, as secas ocorridas em 2004 no Sul do país e 2005/06 no Cerrado, os velhos e conhecidos gargalos logísticos da cadeia de escoamento da produção, entre outros, optou-se pelo caminho fácil de apontar a indústria de defensivos como o “vilão da história”. A manobra é insidiosa, porque, embora o diagnóstico se baseie num problema concreto – o sistema cartorial e ineficaz de registro de produtos, que afeta sensivelmente o custo de produção desses insumos – o que se está propondo como solução é uma “flexibilização” irresponsável e destrutiva para a indústria nacional.
No Brasil, o registro de produtos agroquímicos é obrigatório junto a três entidades diferentes: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ligada ao Ministério da Saúde; o Ibama, do Ministério do Meio Ambiente, e o Ministério da Agricultura. O processo demanda testes de qualidade, de eficácia do produto, de degradação dos resíduos, ambientais e de toxicidade. São controles compatíveis com os de países do primeiro mundo, o que encarece o processo e, conseqüentemente, os produtos. Isto é inevitável, na medida em que defensivos agrícolas têm impacto ambiental e sobre a saúde humana. Ocorre que a análise dos pedidos é extremamente lenta, em parte pela excessiva burocracia mas também por uma série de indefinições sobre diretrizes e pela falta de critérios que facilitem a tramitação do registro de produtos quimicamente equivalentes, o que acarreta ônus adicionais para os fabricantes.
As indefinições com relação a esta questão foram geradas pelo próprio poder público. Um exemplo disto é o decreto 4.074/2002, baixado pelo governo, que instituiu o sistema de registro de genéricos por equivalência: se a empresa provasse que seu produto é quimicamente equivalente à molécula registrada, obteria o registro sem precisar realizar maiores estudos. O problema é que até hoje esse instrumento não foi regulamentado, em prejuízo da sua eficácia. Desde 2002, de 48 pedidos protocolados com base no que ele prevê, somente quatro produtos foram avaliados.
Banalização do registro
Essa ênfase no processo cartorial em detrimento do bom funcionamento do mercado, e até mesmo da fiscalização do uso dos produtos – tão ou mais importante do que o registro para a saúde do consumidor e a preservação do meio ambiente – foi o pretexto para se acusar o setor de defensivos agrícolas de “cartelização” e responsabilizá-lo pela crise da agricultura. Foi com esse discurso que, na Câmara Federal, a deputada Kátia Abreu apresentou o Projeto de Lei 6189/2005, que altera a lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989, “estabelecendo procedimentos para simplificação do processo de registro de agrotóxico equivalente ou genérico; e suspendendo a exigência do Registro Especial Temporário”.
O projeto da deputada deixa a questão na “competência exclusiva do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, dispensado o exame de exigências relativas às áreas de saúde e meio ambiente”. projeto, “a concessão do registro simplificado dar-se-á mediante requerimento do interessado, acompanhado de laudo técnico, emitido por profissional responsável, que ateste a equivalência do produto a outro já registrado no País”. Nos casos de importações, “será exigida a comprovação de registro no país de origem”. Ela dá ainda ao ministério o “o prazo máximo de 60 dias úteis, contados a partir da data de aceitação do requerimento, para decidir quanto à concessão do registro”.
Esse projeto conta com o apoio da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), que representa os produtores agrícolas, e também do lobby da indústria agroquímica argentina, cujo governo tem feito forte pressão sobre o Brasil (especialmente sobre o Congresso Nacional) para a “harmonização” do registro no âmbito do Mercosul. Esta “harmonização” significaria que as equivalências admitidas dentro de cada país do bloco seriam automaticamente aceitas pelos demais.
A pressão da Argentina não se restringe à equivalência do produto técnico (molécula). Ela quer forçar uma equivalência total, que se estenderia do produto técnico ao produto formulado, o que corresponderia à dispensa de estudos de resíduos tóxicos. Isto abriria espaço para a concorrência predatória no setor, prejudicando empresas que bancaram estudos para os produtos formulados em diferentes culturas, e instituiria a completa banalização do registro numa área extremamente sensível para a saúde pública.
A ABIFINA defende a aplicação integral e rigorosa do Decreto nº 4.074/2002, mas com simplificação da burocracia. Equivalência sim, mas não automática para os países do Mercosul, caso contrário o Brasil estará abrindo mão do controle de qualidade de produtos que têm impacto ambiental e podem afetar a saúde humana. O que precisa ser atacado é a mentalidade cartorial dos órgãos de registro, que não demonstram o menor comprometimento com o ambiente e o consumidor. Depois do registro, praticamente não há fiscalização do uso dos produtos, o que neutraliza boa parte do esforço dos órgãos públicos para manter padrões de primeiro mundo nessa área.
A falácia da “cartelização”
O argumento central do projeto da deputada Kátia Abreu e do lobby da indústria argentina é que, neste país vizinho, os preços dos agroquímicos são menores porque há mais concorrência. Uma análise do agronegócio argentino mostra, entretanto, primeiro que sua estrutura de custos é completamente diferente da do Brasil; e segundo que a concentração do mercado de defensivos agrícolas é maior lá do que aqui.
Enquanto no Brasil o setor de agroquímicos movimenta US$ 4,2 bilhões, na Argentina ele não passa de US$ 500 milhões, o que explica o interesse das suas indústrias em pôr as mãos no mercado vizinho. Na perspectiva do custo agrícola, temos na Argentina um cenário onde há mais financiamento, menos pragas nas lavouras e por isso o uso de agroquímicos é menor. Na perspectiva do grau de concentração do mercado fornecedor, a situação brasileira pode ser considerada até um pouco melhor que a do país vizinho. Lá, nove empresas respondem por 86% do mercado enquanto aqui são 10 empresas atendendo a 85% do mercado.
Se observarmos a América Latina como um todo, serão também 10 empresas, mas com uma fatia de 86%. Já entre os países que compõem o Nafta, são 11 empresas cuidando de quase todos os consumidores (98%). Na Europa 12 fornecedores atendem 99% e na Ásia 13 detêm 97,5% do mercado. Se existe um processo mundial de cartelização no mercado de agroquímicos, ele varia conforme o produto e não o país. O setor agroquímico, por ser altamente especializado e consumir pesados investimentos em pesquisa e desenvolvimento de produtos, assistência técnica e treinamento de multiplicadores e agricultores, sem dúvida é bastante concentrado no mundo inteiro.
O principal risco de se aceitar a equivalência automática no âmbito do Mercosul para efeito de registro é a perda de controle sobre a qualidade das análises. Sabe-se, por exemplo, que o Paraguai não tem indústria, é um país eminentemente de comércio e portanto não teria motivos para adotar critérios rigorosos no registro de produtos para exportação. Um pedido que no Brasil leva meses para ser analisado pode ser aprovado no Paraguai em cerca de dez dias. Caso o PL nº 6.189 seja aprovado, quem pode nos garantir que não irá entrar no mercado brasileiro, sob rótulo paraguaio, uma avalanche de produtos chineses e indianos muito baratos e sem qualidade?
Descaminhos dos agroquímicos
Estes produtos, aliás, já circulam no mercado nacional de forma criminosa. São trazidos principalmente pelas fronteiras secas brasileiras, que ficam próximas às regiões produtoras de grãos. É o crime de descaminho – trazer para o País produtos sem o devido recolhimento de imposto -erroneamente chamado de contrabando, que pelo Código Penal é a ação criminosa de trazer para o País produtos proibidos de serem importados, como armas, drogas etc.
Em agosto de 2005, foi realizada pela Polícia Federal a primeira grande operação com o objetivo de reprimir essas operações ilegais, batizada de Caá-Ete e que contou com a participação também de fiscais do Ibama e de auditores da Receita Federal. Foram presas 27 pessoas, inclusive empresários e funcionários públicos, pertencentes a uma quadrilha que, segundo levantamentos policiais, era responsável pela comercialização mensal de cinco toneladas de defensivos agrícolas, movimentando cerca de R$ 1,5 milhão. Os produtos vinham de Ciudad Del Este (Paraguai) e Rivera (Uruguai). Já em agosto deste ano, os federais apreenderam em Guaíra (PR) um caminhão com 2,7 toneladas de defensivos fabricados na China, avaliados em R$ 2 milhões, que entraram no Brasil pela fronteira com o Paraguai e seriam destinados ao mercado do Mato Grosso.
O descaminho de agroquímicos é um reflexo da queda da rentabilidade da agricultura, que impele o agricultor a buscar produtos mais baratos. Ainda que se possa compreender essa motivação, a utilização em lavouras brasileiras de defensivos agrícolas sem controle de qualidade é extremamente perigosa não só pelas razões ambientais e de saúde já citadas, mas também para as exportações brasileiras de grãos, que não deixarão de estar expostas ao controle sanitário dos países compradores. É um equívoco em todos os sentidos, inclusive econômico, querer baixar os custos da produção agrícola flexibilizando requisitos que em todo o primeiro mundo vão se tornando, ao contrário, mais rigorosos.
Tecnologia de ponta
A pesquisa e desenvolvimento de defensivos agrícolas é uma atividade de ponta da química industrial e também, mais recentemente, da biotecnologia. Hoje em dia, o foco das pesquisas está voltado para o desenvolvimento de formulações de usos mais eficientes, toxicologicamente mais leves e ambientalmente mais aceitáveis. Estas são competências relevantes para a competitividade das empresas neste mercado, não só por motivos econômicos como também para cumprir regulamentos sanitários e ambientais cada vez mais restritivos.
O surgimento de produtos agroquímicos com essas características é função da capacidade inovativa da indústria para gerar novas moléculas e da descoberta de novas utilizações para as moléculas conhecidas. Do descobrimento de uma nova molécula até o lançamento do produto, as atividades de P&D consomem, em média, cerca de sete anos. Para se tornar um player neste cobiçado mercado, inclusive em nível internacional, o Brasil conta com uma vantagem comparativa de base, que é a pujança do mercado agrícola doméstico. Não aproveitá-la como base de sustentação de uma indústria própria de defensivos pode redundar em efeito diametralmente oposto: um enorme risco para o agronegócio brasileiro. Um exemplo: se a ferrugem da soja que atacou as lavouras brasileiras no ano passado tivesse afetado simulta-
neamente lavouras norte-americanas, provavelmente não teríamos tido prioridade no fornecimento pelas indústrias do fungicida capaz de resolver o problema, e toda a safra poderia ter sido comprometida. Culturas extensivas exigem agilidade e atualização tecnológica permanente no controle de pragas.
Financiamento: um apoio indispensável
Ao contrário da maioria das atividades industriais, a atividade agrícola tem ciclos de produção longos – de 4 a 5 meses em média – e está sujeita permanentemente a riscos nem sempre calculáveis, decorrentes de irregularidades climáticas e pragas. Esse conjunto de fatores faz o custo do capital aumentar, daí a importância do financiamento agrícola. Ponderando-os frente ao caráter estratégico da produção de alimentos, os países de primeiro mundo concedem não apenas crédito farto aos seus agricultores como também subsídios que os estimulem a permanecer na atividade.
No Brasil, em parte pela escassez de recursos decorrente de sucessivas crises econômicas e em parte também por um passado repleto de casos de desvio de dinheiro dos fundos de financiamento agrícola, hoje a oferta de crédito oficial para a agricultura é uma das menores do mundo, segundo a Organização Mundial de Comércio. O mais recente levantamento (divulgado em agosto) mostra que entre 1986 e 2004 o crédito rural brasileiro caiu de R$ 81,4 bilhões para R$ 40,4 bilhões (em valores de 2004). Uma redução de 49,7%.
Atualmente, o governo responde por não mais que 20% do volume total de financiamento no setor. O principal é bancado pelos próprios produtores, por outras instituições de crédito (a custos mais altos) e por fornecedores, entre os quais a indústria agroquímica, que financia 88% das suas vendas, oferecendo taxas de juros abaixo das praticadas pelo mercado. Nesse cenário, com o crédito convertido em fator de competição para os fornecedores, levam vantagem as grandes empresas transnacionais, que têm mais capacidade de financiamento e eventualmente até condições de aceitar o pagamento em produtos.
É preciso resgatar o crédito agrícola como um instrumento oficial de política econômica. Com seriedade e responsabilidade, de forma a não permitir malversações, mas num regime em que o agricultor possa contar com uma renda relativamente estável. Ele nem deve ganhar uma fortuna quando a safra for excelente nem deve perder tudo na eventualidade de uma safra ruim. Um sistema de financiamento bem planejado e fiscalizado poderia proporcionar essa estabilidade, reduzindo os riscos inerentes à atividade agrícola.
A crise é inegável. Bateu na porteira dos agricultores desde 2004 e, embora hoje já dê alguns sinais de que estaria sendo superada, provocou o comprometimento das últimas duas safras (2004/2005 e 2005/2006). O prejuízo contabilizado chegou a US$ 36 bilhões. Mas nem de longe o setor de defensivos agrícolas pode ser responsabilizado pelo problema. Antes pelo contrário, ele é também uma vítima, não apenas da própria crise agrícola mas principalmente das políticas públicas mal calibradas que, a pretexto de corrigir distorções, corroem a base competitiva da indústria nacional no setor de agroquímicos, comprometendo a sua capacidade de sobrevivência.