REVISTA FACTO
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Jun-Jul 2006 • ANO I • ISSN 2623-1177
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//SIPID

O Sistema Internacional de Patentes em Questão

“Crescimento e desenvolvimento são coisas diferentes: enquanto o primeiro é um processo meramente de adição, o segundo é de transformação, gradual e que implica inovação”. Com essas palavras o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães sintetizou a visão do Itamaraty sobre as questões que estimularam a ABIFINA a organizar o Seminário Internacional “Patentes, Inovação e Desenvolvimento” – SIPID, com a presença de autoridades e especialistas brasileiros e estrangeiros. Apresentamos a seguir os principais aspectos, tendências, conflitos de opinião e desdobramentos do tema da propriedade intelectual abordados no seminário.

Entre o discurso e a prática

O professor Denis Barbosa, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Propriedade Intelectual da UERJ, traçou a trajetória que o sistema de proteção à propriedade intelectual vem percorrendo nos últimos duzentos anos e o posicionamento do Brasil no seu contexto, de Paris a Marraqueche, e constatou que esta é uma história de “sístoles e diástoles entre o desenvolvimentismo e o globalismo, princípios que vêm se conflitando mas também fertilizando-se reciprocamente ao longo do tempo”. A propriedade intelectual concebida como instrumento de desenvolvimento foi um fator decisivo, na sua opinião para corrigir os “exageros e destemperos do internacionalismo”.

O Brasil originalmente procurou seguir o exemplo da Inglaterra, estabelecendo um sistema de patentes voltado para incentivar a industrialização. Um Alvará de D. João VI aplicável somente ao Estado do Brasil, que restringia a outorga da patente apenas a brasileiros ficando os estrangeiros restritos à percepção de um subsídio, foi a quarta lei de patentes do mundo. Por falta de recursos os subsídios não eram pagos, e o governo passou a outorgar patentes também a estrangeiros. Ao final do século 19, 66% das patentes já eram de não-brasileiros.

Na década de 30 do século 20 houve um novo refluxo do globalismo, marcado principalmente pela denúncia do Acordo de Madri (1934). Essa tendência se acentuou na década de 50 – e de forma mais coletiva, ressalta o professor, pois foi quando se delineou a perspectiva dos países “em desenvolvimento”, baseada num questionamento substantivo da experiência do internacionalismo. A partir daí as oscilações se tornaram mais freqüentes. Os anos 70 trouxeram de volta novamente a onda globalista e seu “princípio da igualdade substancial”, que ignorava as assimetrias estruturais entre os países. Mas até a década de 80 o Brasil manteve a visão da patente como instrumento de desenvolvimento e assumiu algumas posições audaciosas – licença compulsória contra a Monsanto (83), reserva de mercado para setores estratégicos como a informática e a química fina, e questionamento no GATT da legalidade de sanções unilaterais (88) – visão que foi neutralizada por completo no governo Collor.

Nos últimos dez anos a posição brasileira tem sido ainda “mercurial”, reiterou Denis Barbosa. Tivemos, por um lado, a aprovação do pipeline mesmo após a cassação de Collor, além de uma série de conseqüências nefastas da aplicação prematura e exagerada de TRIPS. Por outro lado, atitudes aguerridas como a licença compulsória no programa de DST-AIDS sob a gestão de Serra, a participação decisiva do Brasil na Agenda do Desenvolvimento de 2004, e, no âmbito do Judiciário, a recente tendência da 2ª Turma do TFR de “ponderação do internacionalismo em sentenças que revelam reflexão e equilíbrio”. A pressão do Primeiro Mundo cresceu, consubstanciada nos FTAs e TRIPS-Plus, mas também cresceu a reação dos países emergentes. Repetindo uma frase do jornal Pasquim, Barbosa finalizou assim a sua exposição: “subdesenvolvimento não é um fato da história, é um estado de espírito”.

O jurista Jerome Reichman, professor da Faculdade de Direito da Duke University (EUA), elaborou uma instigante comparação da lei e da prática norte-americanas de licenciamento compulsório mostrando que os Estados Unidos recorrem, com freqüência, a esse instrumento cuja aplicação tentam vedar aos países menos desenvolvidos.

“Entre 1940 e 1970, as cortes norte-americanas fizeram uso freqüente de licenças compulsórias para reparar violações das leis antitruste, e especialmente para quebrar cartéis de patentes” – observou Reichman. “Essa situação foi substituída a partir dos anos 80 por um regime de proteção de patente relativamente forte e um enforcement da lei de competição relativamente fraco. Sob a lei vigente, por exemplo, não se pode desafiar uma patente por causa de preços excessivos como forma de abuso, a menos que haja outras evidências de tentativa de monopolizar o mercado.”

O jurista constatou que os EUA recorreram fortemente no passado, e ainda recorrem, a instrumentos contra os desvios do direito de propriedade intelectual, usando por exemplo, a lei antitruste, que pune a ausência de  competição e o estabelecimento de compensações por abuso do direito de patente em casos de contratos “leoninos”, desde que provado o abuso e os efeitos anticompetitivos.

A legislação americana não prevê o uso de licença compulsória por interesse público mas permite o licenciamento compulsório para “uso governamental”: a tônica, na legislação e nas políticas norte-americanas de patentes, é o equilíbrio entre interesses privados e nas relações entre fornecedores e consumidores. Mas Reichman sugere que os países em desenvolvimento não devem se intimidar com isso, dado que “os imperativos do interesse público permanecem consistentes tanto com a Convenção de Paris quanto com TRIPS. Porque os países em desenvolvimento precisam estar especialmente empenhados em contrabalançar os direitos de propriedade intelectual com a necessidade de suprir bens públicos como saúde e educação, eles devem conservar o poder de impor licenças compulsórias no interesse público, independentemente de quaisquer poderes para regular a competição ou invocar o uso governamental”.

Jerome Reichman recomendou aos países menos desenvolvidos o cuidado de que a decisão do licenciamento compulsório para o exercício da prerrogativa do “uso governamental” seja restrito a atividades que estejam normalmente sob a responsabilidade do setor público em qualquer país, e somente após se verificar que o setor privado operando sob condições de livre mercado não poderia atender às necessidades em questão sem o recurso ao licenciamento não-voluntário. “Em outras palavras, o ‘uso governamental’ não deve ser empregado para disfarçar regulação desnecessária de, ou interferência com, operações normais do referido segmento de mercado.”

A ousadia de acionar o instrumento deve andar junto com a cautela e a ponderação, aconselha Reichman. “Se é verdade que o instituto do uso governamental pode efetivamente disciplinar patentes cujas tecnologias são necessárias para esforços públicos vitais de todos os tipos, continua sendo igualmente verdade que o exercício desses poderes pressupõe um longo caminho para desenvolver e implementar um bem concebido sistema nacional de inovação. Estimular a inovação local e fomentar políticas econômicas para suportá-la são, ou deveriam ser, metas prioritárias de todos os países em desenvolvimento. A adoção de firmes políticas de inovação e um arcabouço legal consistente com a lei internacional de propriedade intelectual para implementá-las é que irão, em última instância, determinar o potencial de crescimento de longo prazo de um país em desenvolvimento. O uso do licenciamento não voluntário de invenções patenteadas para qualquer propósito legítimo pode se sustentar somente na medida em que esteja a serviço de metas políticas mais elevadas.”

Pedro Roffe, da área de propriedade intelectual da UNCTAD, apresentou uma palestra mais descritiva e menos prescritiva que a de Reichman. Abordando a “Nova arquitetura internacional de propriedade intelectual: de TRIPS aos FTAs”, historiou rapidamente a trajetória de 120 anos de internacionalização de patentes, reconhecendo que o sistema “não está livre de tensões”. Descreveu as mudanças introduzidas por TRIPS e focalizou especificamente o setor de fármacos e medicamentos, que passou a conviver com exigências mais fortes de patenteabilidade, extensão temporal de direitos etc.

Entre os desdobramentos de TRIPS, Roffe destacou o processo TRIPS Plus e as negociações correlatas em níveis regional e bilateral, marcadas pelo empenho da União Européia e dos EUA de elevar internacionalmente o nível de proteção patentária aos critérios vigentes em suas respectivas legislações. Entre os Free Trade Agreements (FTA) em vigor, destacou os da Austrália, Chile, Israel, Jordânia, Cingapura e Marrocos. Chamou atenção para o aspecto básico desses acordos: “padrões mais rígidos para proteção de propriedade intelectual são negociados no contexto mais amplo de concessões na agricultura, acesso a mercados, investimento direto, serviços e compras governamentais”. No âmbito desses acordos, o uso de instrumentos de políticas públicas como a licença compulsória é bem mais restrito que em TRIPS. Roffe enfatizou a existência de inúmeros pontos controversos no acordo de TRIPS e assinalou que a política de tentar impor acordos bilaterais com cláusulas TRIPS-Plus é uma tentativa dos países desenvolvidos de impor soluções a tais pontos controversos. Terminou sua exposição questionando se não seria este o momento de rever TRIPS.

Licença compulsória: um ponto crítico

Newton Silveira, diretor do Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual, concentrou-se na questão da licença compulsória e no nível de proteção patentária. Lembrou que existe um projeto de lei em andamento no Congresso Nacional – o PL nº 139 – que altera as condições de uso do instrumento, ao retirar a exigência da obrigação de fabricação local. Ele considera mais interessante para o País a solução encontrada à época da votação da Lei de Propriedade Industrial pelo senador Fernando Bezerra, “que foi a seguinte: se o titular da patente importa porque não há viabilidade econômica, qualquer terceiro pode importar também, desde que adquira no exterior de alguém legitimamente autorizado. Esta solução foi equilibrada porque estimula a fabricação nacional pelo detentor da patente estrangeira, mas lhe deixa a saída de alegar inviabilidade econômica”. Quanto à questão do grau de proteção para propriedade intelectual, Silveira defende que ele seja alto: “Nós não deveríamos abusar do sistema de patentes no que diz respeito a nossa biodiversidade? Talvez fosse melhor pedirmos patente para tudo, mesmo que viesse a ser indeferido, do que deixar que nosso patrimônio seja objeto de pedido de patente de terceiros.”

Cícero Gontijo, professor da FGV na área de Acordos Internacionais de Comércio, defendeu outra posição: para ele o Brasil deve empenhar-se na busca de alternativas para tornar a licença compulsória um instrumento efetivo: “Como está em TRIPS e foi aprovada na lei brasileira, a licença compulsória não se utiliza, ela não existe, é ineficaz.” Gontijo defende ainda que o Brasil tenha o direito de exigir a fabricação local para garantir a proteção patentária. Caso contrário, “seremos obrigados a admitir que um chinês morando em Cingapura faça um produto e domine o mercado brasileiro por vinte anos sem conhecer a praia de Copacabana, sem usar meios e matéria-prima brasileiros nem transferir a tecnologia”. Chamou atenção, ainda, para a importância de o INPI recuperar a atribuição, retirada por lei, de analisar contratos de transferência de tecnologia visando coibir cláusulas comerciais restritivas. “É tão óbvio que essas cláusulas têm que ser evitadas que até TRIPS aceita. Só o Brasil não o faz mais.”

Cristina Possas, Coordenadora da Área de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico do Programa Nacional de DST-Aids do Ministério da Saúde relatou o esforço que sua área tem feito para obter licenças compulsórias visando resolver as dificuldades do ministério no programa de AIDS, e a frustração quando a área econômica do atual governo levantou obstáculos como a dificuldade de tratar o assunto de forma independente da questão agrícola junto aos interlocutores norte-americanos. “É óbvio que se trata mais de um processo político do que de um processo legal”, afirmou.

Em seguida o desembargador André Fontes, presidente da mesa, comentou os esforços que o Poder Judiciário vem empreendendo para atualizar-se com a questão da propriedade intelectual, que ele considera um conceito novo do ponto de vista do Direito. “Hoje, varas já estão especializadas, com juízes bem informados. Das oito turmas, duas estão fortes no assunto propriedade intelectual. Na 2ª Turma, há discussões acaloradas sobre TRIPS.”

Harmonização: a quem interessa?

Carlos Correa, diretor do programa de Pós-Graduação em Propriedade Intelectual da Universidade de Buenos Aires, discorreu sobre o que chamou de “crise de qualidade” no sistema de patentes, gerada pela incorporação indiscriminada de critérios de produtividade, e outros relacionados ao marketing de serviços, que deteriora os princípios da política patentária. Nos EUA, segundo ele, não mais de vinte horas são gastas atualmente na análise de um pedido de patente. E, pior, “a presunção é de que se deve conceder, a menos que o escritório possa provar o contrário. O solicitante virou um cliente a ser satisfeito”, resumiu.

Para ilustrar as distorções do sistema tal como ele opera nos países de primeiro mundo, Carlos Correa mostrou patentes esdrúxulas registradas no escritório norte-americano, como um método de exercitar gatos, outro para golfistas segurarem seus tacos de forma a obter maior controle e velocidade no lançamento da bola, um dispositivo bucal para auxiliar no controle do peso, e finalmente um acessório de chapéu para cães com método de utilização. “O rápido incremento dos índices de patenteamento tem sido acompanhado por uma proliferação da concessão de patentes de duvidoso mérito”, lamentou.

Especificamente sobre o setor farmacêutico, Correa comentou que estão se tornando comuns estratégias de patenteamento para cercar a propriedade de inventos e fechar espaços no mercado. Ele considera que a restauração de padrões de inventividade mais rigorosos para patentes teria mais vantagens do que desvantagens, na medida em que o baixo padrão “permite o uso agressivo de patentes ‘inventadas’ contra competidores mais débeis, incrementa a litigiosidade e conseqüentemente os custos para consumidores, e afeta políticas públicas, por exemplo no acesso a agroquímicos e medicamentos”. Ao contrário, a exigência do nível inventivo “premia aportes genuínos, diminui a litigiosidade e promove a inovação genuína e a competência”. Para Carlos Correa, o melhor caminho para as políticas públicas de países em desenvolvimento é aliar um padrão rigoroso de patenteabilidade a medidas de proteção do conhecimento no domínio público e de preservação e exercício da flexibilidade permitida por TRIPS.

Nuno Pires de Carvalho, representante da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), assim como Pedro Roffe, enfocou o problema dos países em desenvolvimento sob a ótica dos instrumentos internacionalmente reconhecidos a partir de TRIPS. “As novas fronteiras da propriedade industrial: mais ou menos proteção?” foi o tema de sua palestra. Segundo Carvalho, novas fronteiras podem ser definidas tanto nos níveis de proteção patentária quanto às formas de proteger. Entre os novos mecanismos criados para proteger tecnologias já disseminadas, ele destacou a controversa proteção para dados de testes, um problema que afeta particularmente a indústria de química fina, e os direitos exclusivos sobre conhecimentos tradicionais, levantando questões acerca de ambas: “Até que ponto se justifica estabelecer ineficientes direitos quase-proprietários para proteger dados de testes, ineficientes na medida em que a exclusividade sobre a matéria confidencial, ainda que combata o parasitismo, leva à reinvenção da roda e incentiva a aplicação de recursos em conhecimentos não-emulativos? Até que ponto a criação de direitos exclusivos sobre conhecimentos tradicionais exerce uma função dinâmica ou representa simplesmente um subsídio cruzado que a maioria da população paga a uma pequena minoria para proteger o que já existe?”

Sobre as recentes mudanças na forma de proteger a propriedade intelectual, o representante da OMPI observou uma tendência a “se reduzir a importância dos elementos ‘deslealdade’ e ‘fraude’ e aumentar a importância do parasitismo e do passageiro clandestino, como meio de proteção aos investimentos”, dando como exemplos a proteção de dados não-originais, proteção de dados de testes confidenciais e proteção das medidas eletrônicas que barram o acesso a certas informações.

Nuno de Carvalho citou a exaustão de direitos e o requisito de descrição capacitadora local como instrumentos que, sem aumentar ou diminuir a proteção patentária, poderiam “melhorá-la socialmente”. Fazendo um balanço de prós e contras do instrumento da exaustão em níveis nacional e internacional, ele se posicionou pela modalidade “exaustão internacional controlada”, que em sua opinião elimina os aspectos negativos e conserva os positivos das outras duas. “A exaustão é internacional, mas o titular recupera o direito exclusivo de importar se provar que está fazendo uso razoável dele”, e, em âmbito nacional, “o governo pode autorizar importação paralela se houver abusos, falta do produto, situação de emergência, práticas anticompetitivas ou quaisquer outros caso de interesse público”.

Quanto à questão da descrição capacitadora do invento, o representante da OMPI defendeu que o país concedente crie na sua legislação dispositivos de disclosure, isto é, determine a adaptação da descrição ao nível local médio de conhecimento técnico, para que se conserve o potencial de realização de invenções alternativas e também para facilitar o acesso à tecnologia descrita após a extinção do direito de patente.

Concluindo, Carvalho projetou um futuro sombrio para os países menos desenvolvidos que resistem ao avanço de TRIPS: o atual debate multilateral sobre a propriedade intelectual estaria, segundo ele, bloqueado por premissas antagônicas “igualmente erradas” – os titulares querendo mais proteção e os usuários querendo reduzi-la – e “enquanto isso as negociações bilaterais e regionais avançam, abrangendo um número crescente de parceiros comerciais dispostos a fazer novas concessões no setor da propriedade intelectual em troca de novas concessões comerciais”.

Já Roberto Jaguaribe, presidente do INPI, adotou em sua palestra a estratégia de resgatar os princípios canônicos do sistema de patentes para defender a posição brasileira contra a atual arquitetura internacional da propriedade intelectual. Lembrou que o sistema patentário, longe de ser a codificação de um direito natural, foi criado para favorecer o desenvolvimento, a inovação e a inventividade, mas acima de tudo “no interesse da industrialização”.

Sobre o rumo que vem tomando a questão depois de TRIPS, com o bilateralismo forçando concessões em países de economia mais frágil, Jaguaribe postulou que “não se pode ser principista, é preciso ser pragmático também. O Brasil entende que, apesar de o sistema ter deficiências relevantes, devemos maximizar seus benefícios. O rumo do automatismo nós não queremos. Nossa participação internacional busca ampliar os espaços de flexibilidade, de forma a combinar estrategicamente política industrial com propriedade intelectual. Isto é que irá nos garantir benefícios a partir do atual sistema de patentes, especialmente o estímulo à formação de um ambiente indutor do desenvolvimento e da inovação”.

TRIPS, segundo Jaguaribe, trouxe penalidades muito acentuadas para os países em desenvolvimento. “O Brasil tem uma sofisticação tecnológica que lhe permite não sofrer excessivamente em função dos desequilíbrios introduzidos pelo acordo. Mas países pequenos nunca terão benefícios, porque seu processo de industrialização é por emulação, assim como foi o processo de industrialização da maior parte dos países que hoje proclamam a necessidade de expansão dos direitos de propriedade industrial. O exemplo mais conhecido de país que retardou a adoção de um sistema patentário é a Suíça, hoje o maior beneficiário per capita de propriedade industrial, por ter copiado a tecnologia inglesa e alemã notadamente na área farmacêutica.”

Sobre o impasse multilateral na questão da propriedade intelectual, o presidente do INPI tem uma visão diferente da OMPI: “existe uma aliança entre países interessados em manter um certo grau de flexibilidade e ONGs, em grande parte ligadas a direitos de consumidores, identificando exageros na ampliação do sistema de proteção, particularmente do sistema patentário, e formando uma aliança que tem capacidade de sustar esse automatismo simplista que tomou conta do processo de gestação de acordos de propriedade industrial desde os anos 90. A agenda do desenvolvimento proposta pelo Brasil e Argentina propõe reconduzir o tema da propriedade industrial às suas origens de instrumento de capacitação, motor de desenvolvimento, de tecnologia e de industrialização. É legítimo o interesse das grandes companhias que atuam internacionalmente em ter regras homogêneas de atuação. Por outro lado, interesse tão ou mais legítimo é o dos países em desenvolvimento de dotar a sua legislação de propriedade industrial de grau de proteção compatível com seu processo de capacitação tecnológica e industrial. São demandas contraditórias e difíceis de conciliar.”

As questões mais delicadas estão, segundo Jaguaribe, no âmbito da OMPI, que “tenta promover uma harmonização considerada detrimental aos interesses dos países em desenvolvimento”. Para ele, existe inclusive o risco de os acordos multilaterais perderem relevância frente aos “instrumentos bilaterais de cooptação que estão sendo utilizados”, como os FTA. “Não interessa no momento ao Brasil uma ampla harmonização”, pelo menos segundo uma pauta definida pelos EUA e Japão, com apoio da União Européia. “As fronteiras da propriedade industrial, que são dinâmicas, nos obrigam a ponderações sobre áreas que estão insuficientemente tratadas: a questão da divulgação, que abrange uma área importante de recursos genéticos e da fonte de obtenção desses recursos; a questão dos conhecimentos tradicionais, que precedem o conhecimento genético; a questão do folclore, das restrições de uso por interesse público, enfim, diversas matérias que são objeto de controvérsia.”

O presidente do INPI questionou mais uma vez a crença no multilateralismo como instância essencialmente democrática: “temos que ponderar se valeria a pena introduzir um freio neste processo pela via multilateral. As negociações multilaterais tendem, historicamente, a não ser tanto negociações, mas simples concessões unilaterais para acomodação de posições pre-estabelecidas, sobretudo para grupos de países, com os EUA à frente”.

“Apesar de identificar deficiências relevantes no atual sistema, o Brasil sabe que ele é praticamente irreversível e temos que maximizar os benefícios que podemos auferir neste quadro que ora se apresenta. Não significa que se deva manter no rumo do automatismo sem nenhum embasamento empírico. Nem a propriedade industrial pura é indutora suficiente de inovação e capacitação tecnológica, nem a ausência de propriedade industrial é indutora de uma indústria copiadora eficaz. É preciso fazer uma combinação estratégica de política industrial com propriedade industrial” – insistiu Jaguaribe.

Paulo Arruda, professor da Unicamp, externou sua preocupação com a falta de proteção patentária no Brasil para a área tecnológica que representa: a genômica e seus desdobramentos na tecnologia de cultivares e de produção de energia renovável. “Hoje o Brasil produz açúcar a um preço menor do que US$ 100 por tonelada. Num setor que era altamente poluidor, com grande impacto no meio ambiente, tivemos condições de desenvolver tecnologias genéticas e de processos industriais que o converteram numa indústria totalmente equilibrada com o meio ambiente. Apesar disso, o setor sucroalcooleiro não tem a proteção patentária necessária para se tornar o potencial fornecedor da energia renovável que o mundo demandará nos próximos 20 a 30 anos.”

O debatedor Sérgio Paulino, do INPI, engajou-se no debate por outra vertente. Mesmo reconhecendo que, no caso da genômica, o desenvolvimento tecnológico brasileiro pode ser positivamente afetado pela proteção por patentes, ele ponderou: “não creio que seja o caso da indústria brasileira como um todo. O fato de a legislação não poder atender diferentemente os agentes econômicos é um problema real. Temos que procurar fazer isso com políticas específicas, complementares”. Paulino reconhece que é delicado e difícil mensurar os estímulos que cada setor precisa para gerar internamente um ambiente de inovação, e lembra que, se no plano legislativo a questão encontra-se estabilizada, no plano das políticas é factível pensar em calibração.

A palavra final do presidente do INPI quanto à complexidade do tema das patentes foi marcante e elucidativa da natureza dos confrontos que se processam na cena contemporânea: “Os compromissos relativos à propriedade intelectual que decorrem de TRIPS obrigam os países menos desenvolvidos a proteger o que não têm. Isto vale para 90% dos países, que não apenas devem proteger propriedade industrial que eles não geram como são obrigados a arcar com os custos da legislação. E ainda incorrem no risco de multas e custos cada vez maiores, porque a eficácia requerida para a proteção da propriedade industrial é maior do que a eficácia exigida na proteção da vida. Países que têm uma eficácia de polícia rudimentar têm que ter excelente eficácia política na área da proteção dos direitos da propriedade industrial. Isto é uma iniqüidade.”

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