Prezado Leitor,
Ao completar seu vigésimo ano de trabalho, a ABIFINA entendeu que era o momento de imprimir um pouco mais de ousadia à sua estratégia de comunicação. Queremos continuar informando aos nossos associados e entidades congêneres sobre as novidades e tendências da química fina, mas acreditamos ser fundamental abrir novos espaços de interlocução com a sociedade. Por isso, nosso tradicional boletim Informando ABIFINA, que no ano passado recebeu o nome de ABIFINA Informa, dá lugar, daqui por diante, à revista FACTO.
FACTO porque, sem abrir mão do direito de opinar, a ABIFINA manterá firme o compromisso de se apoiar nos fatos. FACTO porque, sem invocar uma pretensa neutralidade, esta publicação estará sempre pronta a acolher a pluralidade de pontos de vista que cerca os fatos políticos e econômicos, buscando entender os interesses em jogo e contribuir para a formulação de uma política industrial que dê força ao Brasil.
O programa brasileiro anti-AIDS, notoriamente um dos melhores do mundo e que tem servido de modelo para diversos países, está seriamente ameaçado de desabastecimento devido à crescente escassez dos insumos farmoquímicos essenciais à fabricação dos coquetéis utilizados nesse tratamento. Isso porque os laboratórios internacionais enfrentam dificuldades para atender ao elevado crescimento da demanda – hoje há 40 milhões de infectados em todo o mundo – aumento esse resultante da ação de organismos internacionais sensibilizados por legítimas iniciativas de ONGs no mundo inteiro. Para piorar esse quadro no País, governos que se sucederam desde o início dos anos 90 têm perdido excelentes oportunidades para realizar parcerias com a indústria farmoquímica nacional na busca de alternativas concretas para o desenvolvimento tecnológico e industrial soberano nessa área. Devido a tais fatos o racionamento desses produtos já vem ocorrendo, embora ainda de forma discreta.
A indústria brasileira não somente possui capacidade instalada para atender inteiramente às necessidades do programa governamental de DST-Aids, como já dispõe de tecnologia própria para fabricar a maioria dos princípios ativos para essa finalidade, como é o caso do AZT brasileiro, lançado em 1992 por empresa nacional e internacionalmente reconhecido como de alta qualidade. Uma vez resolvido o problema legal via licenciamento, os produtos mais modernos – ainda sob patente – em pouco tempo também poderão vir a ser fabricados pela indústria farmoquímica instalada no Brasil.
É fato notório que a maior parte dos princípios ativos anti-AIDS importados pelos laboratórios oficiais da Ásia – por força de uma rígida Lei do Pregão que privilegia preço – tem sido reprocessada pela indústria nacional, visto que não atende especificações mínimas de qualidade. Esse fato se traduz numa elevação de custo, certamente em valores superiores à diferença de preços verificada no processo licitatório, mas a burocracia estatal desconsidera esse fato nos seus cálculos.
O governo Lula definiu uma política industrial e tecnológica no âmbito da qual foram priorizados quatro setores industriais, entre eles o de fármacos. Após mais de dois anos de discussões, chegou-se ao consenso de que o instrumento mais adequado para a promoção da indústria de fármacos no País seria a utilização do poder de compra do Estado, já que tais aquisições representam 25% do mercado total desses produtos. Pois bem, apesar disso até hoje não foram definidos os novos rumos para a política de compras governamentais e os laboratórios oficiais continuam privilegiando a importação do produto. O resultado é que a indústria nacional, que no passado chegou a fornecer 50% dos antiretrovirais demandados pelos programas públicos, hoje não atende mais que 2% desse mercado.
A principal razão porque as empresas privadas nacionais não ocupam um espaço significativo no mercado nacional de fármacos anti-AIDS – o que hoje neutralizaria o risco de desabastecimento – é a atitude dos governos do Brasil nos últimos quinze anos que, ungidos pelo sistema financeiro, passaram a utilizar o poder de compra do Estado meramente como um instrumento para a contenção nominal de preços, em vez de promover a inovação tecnológica e a autônoma fabricação local. Ao contrário da maioria dos países de Primeiro Mundo e dos emergentes bem-sucedidos, que usam o poder de compra do Estado para consolidar indústrias domésticas, o governo brasileiro praticamente liquidou o setor farmoquímico privado nacional – um segmento industrial que poderia, inclusive, estar exportando produtos anti-Aids.
Faltou efetivo compromisso com o interesse público e com a sustentabilidade de uma política setorial que não afeta só a indústria, mas também – e principalmente – a saúde da população. O pior é que atitudes como essas parecem prevalecer em outras esferas do poder público. Assim assistimos a essa tragicomédia das CPIs no Parlamento Nacional, onde somente uns poucos congressistas realmente estudam os processos – a grande maioria apenas usa a oportunidade para se promover na mídia, a maioria das vezes com raivosas acusações desprovidas de mérito, respaldadas pela inviolabilidade de um mandato que deveria merecer maior respeito.
A degeneração do espírito público é um fenômeno gritante. Quinze anos atrás, quando o senador Mario Covas presidiu uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito destinada a examinar as causas do atraso tecnológico do Brasil, as audiências públicas começavam nas manhãs de segunda-feira e se estendiam até o início das sessões plenárias na terça-feira, sempre acompanhadas por muitas dezenas de deputados e senadores, além de diversos representantes da sociedade civil. Hoje em dia, quando uma comissão de qualquer uma das Casas do Congresso Nacional resolve propiciar o debate sobre um relevante tema nacional, consegue reunir no máximo dois ou três parlamentares – assim mesmo por poucos minutos. A imensa maioria dos congressistas chega a Brasília nas terças-feiras, à tarde, assina o ponto e acompanha a sessão plenária pelo vídeo ou celular, regressando aos seus estados nas quintas-feiras, pela manhã. O voto decorre, muitas vezes, por indicação de liderança, já que não há estudo de matérias e efetiva dedicação ao mandato.
O Orçamento Nacional, matéria que deveria ser considerada de interesse do Estado, virou objeto de negociação entre partidos políticos e moeda eleitoral. O de 2006, para ser aprovado, necessitou ser negociado pelos partidos políticos em troca de promessas para a campanha eleitoral, como a construção por empresa estatal de um gasoduto com viabilidade econômica questionável, ou o financiamento pelo banco estatal de uma ponte para um estado que já atingira seu limite de endividamento permitido pela lei de responsabilidade fiscal – num claro acinte à lei que deveria ser respeitada.
Infelizmente, com a inação do Legislativo para simplificar procedimentos, o Poder Judiciário também se acomoda, permitindo o acúmulo de processos e a lentidão na prática de justiça, disso resultando uma preocupante sensação de impunidade, agravada pela ineficácia dos demais poderes.
Diante da inércia e da falta de espírito público de administradores; diante da absoluta supremacia dos interesses pessoais e corporativos encontrados nos partidos políticos – que deveriam visar o bem público, parece-nos que a crise política e administrativa no Brasil tem raízes bem mais profundas do que se poderia imaginar. Temos que construir um verdadeiro projeto de Nação, com plena adesão da sociedade, sob pena de sermos levados a nos lamentar como fez Benito Mussolini sobre sua pátria, nos anos 30 do século passado, quando disse: “Governar a Itália não é difícil. É simplesmente inútil.”