Alterações na legislação de fitoterápicos devem levar em consideração especificidades locais ou podem trazer impactos negativos ao setor, inibindo a inovação e dificultando o acesso da população aos produtos, alertaram especialistas durante o segundo módulo do webinar “Atualização das Normativas de Fitoterápicos”, realizado na última terça-feira, 29 de junho. O evento foi organizado pela ABIFINA e pela ABIQUIFI, com o apoio de entidades representativas do segmento de fitoterápicos.

O debate acontece no momento em que a Gerência de Medicamentos Específicos, Notificados, Fitoterápicos, Dinamizados e Gases Medicinais (GMESP), da Anvisa, prepara alterações no marco regulatório de fitoterápicos no Brasil. A proposta de mudança vem gerando preocupação no setor, que teme que as novas diretrizes acarretem a necessidade de redesenvolvimento dos produtos já registrados e comercializados no país. Presente no webinar, a Anvisa frisou que está em constante diálogo com o setor e que as mudanças na legislação impactam o controle de qualidade e produção.

As discussões no evento trouxeram insights para o contexto brasileiro e permitiram aprofundar os conhecimentos do setor sobre o tema. “Destacamos o potencial dos insumos vegetais como uma opção viável ao país e os palestrantes de hoje reforçarão a importância de avaliarmos criteriosamente os impactos regulatórios que a alteração normativa em discussão poderá causar na fabricação da cadeia completa (IFAV e medicamento) de fitoterápicos no Brasil”, afirmou o presidente-executivo da ABIQUIFI, Norberto Prestes, na abertura.


Norberto Prestes

Presidente-executivo da ABIQUIFI.


A experiência europeia

Apresentada durante o webinar pela coordenadora de Consulting & Strategic Innovation da empresa Analyze & Realize, Heike Stier, a tentativa de harmonização da legislação de medicamentos fitoterápicos da União Europeia é emblemática de como a regulamentação pode restringir o registro e a comercialização de produtos.


Heike Stier

Coordenadora de Consulting & Strategic Innovation da empresa Analyze & Realize.


Após a introdução, pela agência regulatória europeia, das duas diretrizes para medicamentos fitoterápicos, em 2004, e para suplementos nutricionais, em 2006, o bloco viu o número de registros de drogas declinar. Segundo Stier, as normas apresentavam uma série de entraves e disparidades, que tornavam o processo de registro de medicamentos custoso e muito rígido – como a necessidade de comprovação de uso conhecido da substância por pelo menos 30 anos, sendo 15 anos de comercialização na Europa, período durante o qual a forma de extração e a posologia devem ter se mantido as mesmas.

Após a introdução, pela agência regulatória europeia, das duas diretrizes para medicamentos fitoterápicos, em 2004, e para suplementos nutricionais, em 2006, o bloco viu o número de registros de drogas declinar. Segundo Stier, as normas apresentavam uma série de entraves e disparidades, que tornavam o processo de registro de medicamentos custoso e muito rígido – como a necessidade de comprovação de uso conhecido da substância por pelo menos 30 anos, sendo 15 anos de comercialização na Europa, período durante o qual a forma de extração e a posologia devem ter se mantido as mesmas.

Como consequência, muitas empresas, especialmente as de pequeno porte, viram-se desestimuladas a seguir investindo em inovação e a produzir medicamentos. Outras acabaram direcionando seus esforços para produção e desenvolvimento de suplementos nutricionais, cuja legislação, mais flexível, permitia inovações, por não estar baseada na tradição, como a de medicamentos.

Por não servirem ao propósito a que se propunham – promover um ambiente regulatório que possibilitasse o registro e a comercialização de produtos fitoterápicos -, as diretrizes foram suspensas e estão em revisão desde 2015. Hoje, a Europa não se encontra harmonizada e cada Estado-membro adota parâmetros próprios para registro e comercialização dessas substâncias.

Harmonização x convergência regulatória

O coordenador do Centro de Inovação em Biodiversidade e Saúde (CIBS), de Farmanguinhos/Fiocruz, Glauco Villas Boas, chamou atenção para o que ele chama de mito da internacionalização. Segundo ele, não existe hoje no mundo um entendimento unificado sobre legislação de fitoterápicos. Villas Boas lembrou que China, Índia e Estados Unidos seguiram um caminho diferente da União Europeia. “Os países asiáticos seguiram as premissas da OMS, não se alinhando às diretrizes europeias. Nos Estados Unidos, nos anos 1990, o Congresso Americano liberou a produção e o consumo de produtos à base de plantas como suplementos alimentares”, disse.


Glauco Villas Boas

Coordenador do Centro de Inovação em Biodiversidade e Saúde (CIBS), de Farmanguinhos/Fiocruz.


Para Villas Boas, a saída é pensar em soluções como a convergência regulatória, que permite aos Estados adaptar as normas de acordo com suas especificidades locais e culturais, em vez de harmonização, quando se unifica a legislação de diferentes países. “A harmonização limita, a convergência possibilita a manutenção da soberania nacional. Poderíamos falar de reconhecimento mútuo, que seria mais elástico para trabalhar essas questões regulatórias pensando num patamar internacional”, argumentou. Para ele, o próprio insucesso da experiência europeia aponta para a necessidade de se adotarem caminhos diferentes.

Ele aponta ainda que um dos riscos da harmonização é a necessidade de redesenvolvimento de produtos para adequação às novas normas, como aconteceria caso o Brasil adotasse os critérios europeus, já que o país trabalha com conceitos diferentes de extrato. “A concepção de extrato seco na farmacopeia brasileira está mais próxima do que está escrito na farmacopeia dos Estados Unidos. Mas o que está escrito na farmacopeia europeia não vai corresponder às necessidades de harmonização propostas”, explicou.

O coordenador do CIBS destacou também que a indústria brasileira de fitoterápicos tem a maior expertise instalada da América Latina e que isso pode mudar a compreensão que se tem hoje desse tipo de medicamento, vindo a afetar a legislação. “Temos as tecnologias mais avançadas disponíveis, capazes de desvendar a composição de fitocomplexos. Elas podem trazer uma revolução na produção de extratos e de novos padrões, tornando os entendimentos atuais obsoletos”, defendeu.

Regulação e falhas de mercado

Moderando o debate, o farmacêutico e ex-presidente da Anvisa Dirceu Barbano chamou atenção para o fato de o legislador às vezes atuar como um obstáculo ao desenvolvimento de medicamentos, podendo criar falhas de mercado. “Nem todas as ferramentas regulatórias que hoje são clássicas partem de um princípio de racionalidade”, afirmou. “Temos que compreender como essas alterações vão impactar o setor. Falhas de mercado ocorrem quando regulação gera reserva ou privilégios a empresas, quando deixa de preservar as questões da tradicionalidade e da capacidade de produção locais, quando a regulação deixa de incentivar a autonomia produtiva de um país ou permite que a vulnerabilidade seja aumentada”, destacou. Para ele, é importante o diálogo do setor produtivo com a agência reguladora.


Dirceu Barbano

Farmacêutico e ex-presidente da Anvisa.


Anvisa e o novo marco regulatório

Presente no webinar, a Anvisa explicou que a nova regulamentação está sendo pensada de forma a simplificar o modelo atual de registro, e que as mudanças estarão restritas ao controle de qualidade dos extratos. Segundo o gerente de Medicamentos Específicos, Notificados, Fitoterápicos, Dinamizados e Gases Medicinais da agência, João Paulo Silverio Perfeito, a proposta que vem sendo trabalhada deixa de considerar a variação quantitativa já estabelecida para levar em consideração a relevância farmacológica e o extrato como um todo. “A proposta não muda as formas de comprovação de segurança e eficácia”, afirmou.


João Paulo Silverio Perfeito

Gerente de Medicamentos Específicos, Notificados, Fitoterápicos, Dinamizados e Gases Medicinais da Anvisa.


Além disso, o representante da agência reguladora garantiu que a proposta prevê uma convergência e não uma harmonização regulatória. “Utilizamos muito do conhecimento da experiência do Canadá e da Austrália. Não há perda de soberania e do conhecimento que o Brasil tem. Há uma harmonização apenas em termos do conceito e do entendimento de extratos”, enfatizou. “Não há harmonização com a agência europeia. Temos divergências na forma de aprovação”, concluiu.

Encerramento 

O presidente-executivo da ABIFINA, Antonio Bezerra, também enfatizou a importância do diálogo com a Anvisa e da análise de impacto regulatórios sobre a cadeia produtiva, para que não se crie insegurança jurídica, nem se desperdicem os recursos investidos até o momento pelo setor. “Foram feitos investimentos, foram desenvolvidas metodologias e validações, processos produtivos foram reavaliados. Agora temos uma nova perspectiva e isso deve ser considerado pela Anvisa. A agência está madura para fazer essa discussão, para que a gente possa minimizar esses impactos e pacientes possam receber produtos com segurança”, encerrou.


Antonio Bezerra

Presidente-executivo da ABIFINA.


Próximo webinar

Perfeito aproveitou a ocasião para divulgar um webinar que a Anvisa vai realizar no dia 19/7, às 15h, para apresentar em detalhes o novo marco regulatório e ouvir as dúvidas e as considerações do setor. Mais informações sobre o evento serão divulgadas em breve, de acordo com o representante da agência.

Assista ao evento na íntegra