Fonte: Consultor Jurídico
21/02/24
Giovani Ferri
Luciano Furtado Loubet
19 de fevereiro de 2024, 13h13
AmbientalLeis
1. Introdução: a nova disciplina legal dos agrotóxicos no Brasil
A Lei 14.785, de 27 de dezembro de 2023, passou a regular de forma específica o tema dos agrotóxicos no Brasil, revogando integralmente a Lei 7.802/1989, que vigorou por mais de três décadas no país.
A nova lei dispõe sobre a pesquisa, experimentação, produção, embalagem, rotulagem, transporte, armazenamento, comercialização, utilização, importação, exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos e produtos de controle ambiental.
De forma similar à legislação anterior, a nova Lei de Agrotóxicos continua prevendo o sistema da tríplice responsabilidade (administrativa, civil e penal) em seus artigos 49 a 57 no que diz respeito aos danos causados à saúde das pessoas e ao meio ambiente pelos produtos agrotóxicos.
Outrossim, conforme veremos adiante, os artigos 56 e 57 da Lei 14.785/2023 permitem a punição criminal de quem, agindo de forma irregular, venha a produzir, armazenar, transportar, importar, utilizar, comercializar agrotóxicos ou dar destinação inadequada a resíduos e embalagens vazias de agrotóxicos.
Contudo, a nova lei abrandou a responsabilidade penal prevista na revogada Lei 7.802/1989, extirpando do mundo jurídico algumas condutas incriminadoras, ao mesmo tempo em que trouxe significativas mudanças na seara criminal, criando novos núcleos penais outrora inexistentes na legislação revogada.
Estuda-se, também, as interações com a Lei de Crimes Ambientais, especialmente o crime previsto no artigo 56.
2. Confronto entre os núcleos penais: a) artigos 56 e 57 da Lei 14.785/2023; b) artigo 56 da Lei 9.605/1998; c) artigo 15 da Lei 7.802/1989 (revogada)
A nova Lei de Agrotóxicos trouxe alterações significativas na seara da responsabilidade penal, criando novos núcleos de condutas incriminadoras, ao mesmo tempo em que extirpou do mundo jurídico algumas condutas típicas anteriormente previstas na revogada Lei 7.802/1989.
Para fins de confronto, vejamos quais são os núcleos penais da revogada Lei 7.802/1989 e da nova Lei 14.785/2023, sendo igualmente pertinente um confronto entre ambas as normas com a Lei 9.605/1998.
2.1. Distinção entre agrotóxicos “não registrados” ou “não autorizados” e “permitidos”
Veja-se que agora a nova Lei de Agrotóxicos distinguiu de forma específica os crimes relativos aos agrotóxicos “não registrados” ou “não autorizados” (artigo 56) e os crimes envolvendo os agrotóxicos permitidos, mas que são produzidos, importados ou comercializados em desacordo com a lei ou tenham suas embalagens descartadas de forma irregular (artigo 57). Esta diferenciação não existia na revogada Lei 7.802/1989.
Ao diferenciar os agrotóxicos permitidos dos agrotóxicos não registrados ou não autorizados, a nova lei busca punir de forma mais severa as condutas envolvendo os agrotóxicos ilegais que comumente ingressam no Brasil por meio de sua extensa fronteira.
Reprodução
Assim, para os casos que envolvem agrotóxicos não registrados ou não autorizados, a nova lei previu uma severa pena que varia de 3 a 9 anos de reclusão, podendo ser aumentada de 1/6 até o dobro dependendo do resultado do crime. De forma contrária, a revogada Lei 7.802/1989 não distinguia os agrotóxicos permitidos dos não permitidos e previa a mesma pena para ambos os delitos, qual seja, 2 a 4 anos de reclusão.
2.2. Artigo 56 da Lei Federal 14.785/2023:
O artigo 56 da Lei Federal 14.785/2023 possui 06 núcleos de condutas: produzir, armazenar, transportar, importar, utilizar e comercializar agrotóxicos, regulando especificamente os agrotóxicos não registrados ou não autorizados.
A Lei 14.785/2023 inovou ao prever dois novos núcleos no artigo 56: “Armazenar” e “utilizar”, os quais não estavam previstos na revogada Lei 7.802/1989. Contudo, é preciso lembrar que estas duas condutas somente se aplicam aos agrotóxicos não registrados ou não autorizados (artigo 56), não estando reproduzidas no artigo 57. A mesma situação se aplica ao verbo “transportar”, apenas previsto no artigo 56 da nova Lei de Agrotóxicos.
2.3. Artigo 57 da Lei Federal 14.785/2023:
A tipificação para os crimes de agrotóxicos registrados ou de uso permitido recebeu tratamento muito mais tímido pelo legislador, pois conforme apontado, o artigo 57 da Lei 14.785/2023, prevê apenas 4 núcleos de conduta: produzir, importar, comercializar e dar destinação inadequada a resíduos e embalagens vazias de agrotóxicos ou de produtos de controle ambiental em desacordo com a lei.
Comparando-se com os núcleos contidos no artigo 56, que trata dos agrotóxicos não registrados ou não autorizados, verificam-se as seguintes condutas não previstas no artigo 57: processar, embalar, exportar, fornecer, transportar, armazenar, guardar, ter em depósito ou usar produto ou substância tóxica, perigosa ou nociva à saúde humana ou ao meio ambiente, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou nos seus regulamentos.
Entretanto, é inquestionável que algumas destas condutas similares poderão ser enquadradas no artigo 57 da Lei 14.785/2023 quando restarem preenchidos os seguintes núcleos: 1) produzir (processar, embalar); 2) comercializar (exportar, fornecer).
Contudo, a depender do caso, as condutas de armazenar, guardar e, especialmente, usar agrotóxicos registrados ou de uso permitido em desacordo com as normas, não terão enquadramento no artigo 57 da nova Lei de Agrotóxicos, mas permitirão a incidência do artigo 56 da Lei de Crimes Ambientais, norma ambiental de caráter geral.
Já em relação ao revogado artigo 15 da Lei 7.802/1989, verifica-se que não foi reproduzido pelo artigo 57 da nova Lei 14.785/2023 os núcleos “transportar”, “aplicar” e “prestar serviço”, havendo implicações importantes em relação à lei penal no tempo, situação que demandará percuciente interpretação dos tribunais pátrios.
2.4. Artigo 56 da Lei 9.605/1998:
O artigo 56 da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), norma ambiental de caráter geral, possui 12 núcleos de condutas: produzir, processar, embalar, importar, exportar, comercializar, fornecer, transportar, armazenar, guardar, ter em depósito e usar.
Em uma análise comparativa, verifica-se que não estão previstos no artigo 56 da nova Lei de Agrotóxicos as condutas de “processar e embalar”, mas estas podem enquadrar-se na conduta típica de “produzir”, pois a produção do agrotóxico pressupõe seu processamento e embalagem.
Por outro lado, também não está prevista na Lei 14.785/2023 a conduta de “exportar”, mas esta ação igualmente permite enquadramento na conduta de “comercializar”, pois é evidente que a exportação pressupõe a comercialização ilegal do produto.
Assim, verifica-se que dificilmente haverá uma conduta relativa a agrotóxicos não autorizados que não esteja abrangida pelo artigo 56 da Lei Federal 14.785/2023. de qualquer forma, na eventualidade de uma conduta não passível de enquadramento na Lei de Agrotóxicos, admite-se a aplicação subsidiária do artigo 56 da Lei 9.605/1998 (que já vinha sendo adotada, conforme apontado no próximo item).
Outrossim, num comparativo entre o artigo 56 da Lei Federal 14.785/2023 e o artigo 15 da revogada Lei 7.802/1989, embora a nova lei não tenha reproduzido as condutas “aplicar” e “prestar serviço”, a primeira se enquadra perfeitamente no termo “utilizar” previsto em seu artigo 56, não havendo dúvidas de que a conduta consistente em “aplicar” um produto agrotóxico equivale a “usar” ou “utilizar” uma substância perigosa não permitida. Em complemento, a conduta consistente em “prestar serviço” igualmente permite enquadramento típico nas condutas de “utilização” e “aplicação”, amoldando-se ao artigo 56 da Lei 14.785/2023.
Portanto, em termos de lei penal no tempo, acredita-se que não haverá grandes controvérsias na aplicação da nova Lei de Agrotóxicos quando a conduta ilícita investigada ou processada pelo revogado artigo 15 da Lei 7.802/1989 envolver agrotóxicos não registrados ou não autorizados, pois a mesma, provavelmente, amoldar-se-á perfeitamente ao novo tipo penal do artigo 56 da Lei 14.785/2023. Contudo, em relação aos registrados, será necessária análise mais aprofundada pelos tribunais.
2.5. Verbos “importar” e “armazenar” introduzidos pela nova Lei 14.785/2023
Dos 6 núcleos contidos no artigo 15 da revogada Lei 7.802/1989, 3 estavam reproduzidos no artigo 56 da Lei 9.605/1998 (produzir, comercializar e transportar). Quanto a esse ponto, não existia nenhuma divergência, pois se aplicava o critério da especialidade da Lei de Agrotóxicos.
Contudo, havia um Conflito Aparente de Normas quanto ao verbo “importar”, pois esta conduta não estava prevista no artigo 15 da revogada Lei 7.802/1989, mas somente no artigo 56 da Lei 9.605/98. Nesse caso tínhamos uma hipótese de omissão normativa da revogada Lei 7.802/1989, fator que levava a aplicação do artigo 56 da Lei 9.605/1998 no caso da importação ilegal de agrotóxico.
Assim, se alguém importasse agrotóxicos sem autorização, cometia o crime do artigo 56 da Lei 9.605/1998, conforme entendimento do Tribunal Regional Federal da 4a Região.
Agora, essa divergência foi solucionada em definitivo com a nova Lei 14.785/2023, pois os artigos 56 e 57 previram expressamente o verbo “importar”, não mais existindo conflito entre a Lei de Agrotóxicos e a Lei de Crimes ambientais no tocante a esta conduta.
De igual forma, o verbo “armazenar” não figurava no rol de núcleos de condutas do art. 15 da Lei 7.802/1989.
Assim, aquele que armazenasse agrotóxicos também incidia no artigo 56 da Lei de Crimes Ambientais, consoante entendimento dos Tribunais Pátrios, uma vez que não havia previsão de referida conduta típica no artigo 15 da Lei 7.802/1989. Agora referida omissão foi parcialmente corrigida com a inserção do verbo “armazenar” no artigo 56 da nova Lei de Agrotóxicos.
Contudo, a nova lei merece críticas nesse ponto, pois inseriu o núcleo “armazenar” apenas no artigo 56 da Lei 14.285/2023, de forma que tal conduta somente se aplica aos agrotóxicos não registrados ou não autorizados, não estando reproduzida no artigo 57.
Entretanto, a conduta de “armazenar” agrotóxico de forma irregular, ainda que registrado ou de uso permitido, enseja enquadramento no artigo 56 da Lei 9.605/1998, o qual prevê expressamente o núcleo “armazenar”, sendo certo os tribunais deverão conferir adequada interpretação e enquadramento da referida conduta na legislação pertinente, seguindo-se na esteira da subsidiariedade já decidida para os casos anteriores citados.
Nesse contexto, entendemos que por força do princípio da especialidade, quando uma conduta não estiver expressamente prevista nos tipos penais da Lei Federal 14.785/2023, admite-se o enquadramento subsidiário do artigo 56 da Lei 9.605/1998, seguindo-se corrente doutrinária e jurisprudencial majoritária que vinha prevalecendo sobre a matéria.
3. Conclusões
Conclui-se que a revogada Lei 7.802/1989 apresentava alguns conflitos de interpretação em relação à Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), fator que exigiu uma melhor redação legislativa para evitar interpretações conflituosas em sua aplicação, a exemplo dos núcleos penais “importar”, “armazenar” e “utilizar” produtos agrotóxicos.
Finalmente, não andou bem o legislador ao inserir os núcleos “armazenar”, “utilizar” e “transportar” apenas no artigo 56 da Lei 14.285/2023.
Nesse sentido, é preciso atentar que tais condutas somente se aplicam aos agrotóxicos não registrados ou não autorizados (artigo 56), não estando reproduzidas no artigo 57, de modo que o armazenamento, transporte e o uso irregular de agrotóxicos registrados ou permitidos admitem enquadramento de tais condutas no artigo 56 da Lei 9.605/1998, conforme entendimento que já vinham adotando os tribunais.
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Giovani Ferri
é promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Paraná, coordenador do Grupo de Atuação Especializada em Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo da Região Oeste do Paraná (Gaema), doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e especialista em Direito Ambiental pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
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Luciano Furtado Loubet
Promotor de Justiça do Núcleo Ambiental do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul. Doutorando em Direito Ambiental e da Sustentabilidade pela Universidade de Alicante – Espanha. Mestre em Direito Ambiental e da Sustentabilidade pela Universidade de Alicante – Espanha.