Fonte: Consultor Jurídico
03/04/24

Recentemente publicamos nesta ConJur uma análise sobre a tipificação penal da nova Lei de Agrotóxicos e sua interação com a revogada Lei Federal nº 7.802/89 e, também, com a Lei de Crimes Ambientais (Lei Federal nº 9.605/98).

Foram apontadas condutas que continuaram típicas, outras que foram modificadas, revogadas, incluindo a aplicação subsidiária da Lei de Crimes Ambientais.

Avançando ainda mais neste tema, impõe-se trazer à discussão da comunidade acadêmica e dos operadores do Direito as possíveis interações da lei penal no tempo em relação às condutas que, praticadas antes da Lei Federal nº 14.785/23, continuarão a ser consideradas crimes, e aquelas em que poderá haver a abolitio criminis.

Artigo 15 da Lei 7.802/1989 e a lei penal no tempo
Para enfrentamento deste tema, inicia-se pelo princípio basilar insculpido no artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição, ao garantir que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Trata-se de uma garantia fundamental traduzida pelo Princípio da Legalidade, igualmente previsto no artigo 1º do Código Penal.

Além disto, o artigo 2º do Código Penal determina que “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória”.

Trata-se da figura da abolitio criminis, elencada como causa de extinção da punibilidade pelo artigo 107, III, do Código Penal, o qual assegura a impossibilidade de punição criminal em decorrência da retroatividade de lei que não mais considere o fato como criminoso.

Com base nestes pressupostos do Direito Penal é que se exige uma análise do conflito temporal entre as três normas estudadas: a) Lei Federal 7.802/1989; b) Lei Federal 9.605/1998 e c) Lei Federal 14.785/2023.

No tocante aos processos em trâmite, relativos a produtos agrotóxicos, cujas condutas foram enquadradas no artigo 56 da Lei 9.605/1998 por ausência de conduta típica prevista na Lei 7.802/1989, a exemplo das figuras de “importar” e “armazenar”, não há que se discutir a aplicação da lei posterior, já que as penas dos artigos 56 e 57 da nova Lei de Agrotóxicos são mais graves.

Desta forma, não podem retroagir para alcançar situações pretéritas, pois envolvem o fenômeno jurídico da novatio legis in pejus, o qual impede a retroatividade da lei mais severa.

Assim também o é, em relação às condutas enquadradas no artigo 15 da revogada Lei 7.802/1989, relativas a agrotóxicos não registrados ou não autorizados, uma vez que passaram a ter enquadramento no artigo 56 da nova Lei de Agrotóxicos, com pena muito mais severa, não podendo retroagir para alcançar fatos pretéritos.

A questão que se coloca em maior destaque e poderá suscitar controvérsias é a seguinte: em relação às condutas anteriores à nova Lei 14.785/2023, tais como os núcleos “transportar” e “aplicar/usar” envolvendo os agrotóxicos de uso permitido, estariam tais condutas sujeitas ao artigo 56 da Lei 9.605/1998 (conforme já defendemos em artigo anterior e que, inclusive, possui pena mais branda) ou teríamos uma hipótese de abolitio criminis?

Tal questionamento se deve ao fato de que o artigo 15 da revogada Lei 7.802/1989, embora previsse os núcleos “transportar” e “aplicar”, não distinguia os agrotóxicos permitidos dos não autorizados ou não registrados.

Pela nova Lei 14.785/2023, as condutas de “transportar” e “aplicar” foram deslocadas apenas para o artigo 56 da lei (agrotóxicos de uso não autorizado ou não registrado), não estando previstas no artigo 57 da nova lei, que somente se aplica aos agrotóxicos de uso permitido.

Certamente trata-se de uma questão controversa que deverá ser enfrentada pelos tribunais, mas, em nosso entendimento, tais condutas se amoldam ao artigo 56 da Lei 9.605/1998, sendo hipótese de aplicação do Princípio da continuidade normativo-típica, ou seja, embora o tipo anterior tenha sido revogado, a conduta delituosa continua sendo crime com o enquadramento da conduta em outro tipo penal, conforme lecionam Rogério Sanches Cunha e César Roberto Bitencourt:

“O princípio da continuidade normativo-típica, por sua vez, significa a manutenção do caráter proibido da conduta, porém com o deslocamento do conteúdo criminoso para outro tipo penal. A intenção do legislador, nesse caso, é que a conduta permaneça criminosa.” [1]

Aplica-se o princípio da continuidade normativo típica quando uma lei é revogada, mas a conduta nela incriminada é mantida em outro dispositivo legal da lei revogadora, não ocorrendo, via de regra, a conhecida figura da abolitio criminis, a qual extingue, simplesmente, o crime anterior.

Em outros termos, o princípio da continuidade normativo típica significa a manutenção do caráter proibido da conduta, contudo, com o deslocamento do conteúdo criminoso para outro tipo penal. A vontade do legislador é que a referida conduta permaneça criminalizada, por isso, não configura a abolitio criminis [2].

Nesse sentido, destaca-se que tal princípio já foi acolhido pelo Supremo Tribunal Federal:

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