Fonte: A Semana
30/04/25

Estudo revela presença de venenos na água da chuva enquanto crime organizado lucra

Publicado em 24/04/2025 11:07

O veneno vem do céu, do solo e das redes. Um estudo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) confirmou a presença de agrotóxicos na água da chuva em grandes centros urbanos e cidades do interior paulista. Em paralelo, o mercado ilegal desses insumos ganha musculatura com apoio do crime organizado, facilidade das vendas online e inoperância da regulação. O Brasil, maior consumidor de agrotóxicos do mundo, vê-se diante de uma crise ambiental que ultrapassa fronteiras físicas e morais, com impactos diretos na saúde pública, na democracia e no tecido social.

Publicado na revista Chemosphere e repercutido pela Revista Fapesp, o estudo da Unicamp coletou dados entre 2019 e 2021 em Campinas, Brotas e São Paulo. Em todas as localidades, a água da chuva revelou contaminação por 14 tipos de agrotóxicos, entre eles a atrazina, herbicida banido no Brasil, mas ainda presente no ar. Campinas liderou com 701 microgramas por metro quadrado (µg/m²), seguida por Brotas (680 µg/m²) e São Paulo (223 µg/m²). A concentração acompanha a densidade agrícola: em Campinas, quase metade do território é ocupado por lavouras.

A coordenadora da pesquisa, Cassiana Montagner, alerta: “A ideia de que ao tomar água de chuva estamos tomando uma água limpa, ela não é de toda verdade.”

Esse dado expõe não apenas a fragilidade dos sistemas de controle ambiental, mas também a ilusão de que a natureza é um refúgio puro. A contaminação é sistêmica e invisível, incorporada ao cotidiano.

Crime e campo: a simbiose tóxica

Enquanto os dados científicos escancaram a presença dos venenos no ar, a realidade do campo revela como o Brasil se tornou refém de um mercado de agrotóxicos ilegais. Segundo estimativas do setor, um em cada quatro agrotóxicos em circulação no país é irregular. Em 2023, a Polícia Federal apreendeu 575 toneladas de produtos ilegais — um aumento de 180% em relação ao ano anterior.

Esse mercado movimenta contrabando, falsificação e desvio de finalidade. O caso do paraquat, proibido no Brasil desde 2020 por causar câncer e Alzheimer, mas ainda legal no Paraguai, é emblemático. O produto entra por rodovias no Paraná e é adquirido com um clique por produtores que buscam reduzir custos, mesmo com os riscos à saúde e ao meio ambiente.

A associação com o crime organizado já é realidade. Na Operação Mafiusi, a Polícia Federal revelou que o PCC passou a incluir agrotóxicos em sua logística criminal, ao lado de drogas e cigarros. A análise do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (Idesf) é categórica: “Não importa tanto o produto, são quadrilhas especializadas em logística”, diz Luciano Stremel Barros, presidente do Idesf.

O Estado ausente e as plataformas cúmplices

A digitalização impulsionou esse mercado ilegal. Em marketplaces e grupos no Facebook, agrotóxicos proibidos são vendidos abertamente. Quando confrontada, a Meta apenas compartilhou sua política de conteúdo restrito. Para Edson Vismona, presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCPI), trata-se de omissão deliberada: “As empresas detêm o poder, mas delegam às vítimas o controle.”

Essa negligência reforça um ciclo onde o Estado regula no papel, mas não atua na prática. A fiscalização é pontual, e o discurso de liberdade de expressão serve, muitas vezes, como escudo para a inércia das plataformas digitais.

Fronteiras porosas, legislações divergentes

No campo diplomático, especialistas propõem uma legislação comum no Mercosul, à semelhança do modelo europeu, para harmonizar o controle de substâncias perigosas. Contudo, os entraves políticos são profundos. O professor Eric Gustavo Cardin, da Unioeste, destaca que o Parlasul pouco avançou nesse sentido e que o Paraguai, com leis mais permissivas, ocupa uma posição confortável no mercado regional.

A possível pressão da União Europeia em acordos comerciais com o bloco pode servir como catalisador de mudanças, mas até lá, a realidade é de um ecossistema político-institucional permissivo, onde as normas são tratadas como ficção burocrática e o veneno escorre livre.

Democracia, saúde e o preço da omissão

A crise dos agrotóxicos transcende o debate técnico. Trata-se de uma escolha de modelo de desenvolvimento, onde a produção agrícola prioriza o lucro imediato em detrimento da saúde da população e da integridade ambiental. Como afirmou Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português, “a ecologia dos saberes é o caminho para um futuro sustentável.”

No Brasil, no entanto, o conhecimento científico e os saberes tradicionais são constantemente deslegitimados em nome de uma suposta modernização do campo, que se dá à base de venenos e ilegalidade.

O Brasil precisa escolher entre o agronegócio da morte ou uma agricultura sustentável e democrática. A presença de agrotóxicos na chuva e o avanço do mercado ilegal são sintomas de um Estado que falha em proteger o cidadão. A solução passa por investimento em ciência, fortalecimento das instituições de fiscalização, regulação efetiva do comércio digital e cooperação internacional. E, acima de tudo, pela retomada de uma visão de futuro que respeite a vida — em todas as suas formas.

Matéria completa

Anterior

Polícia de Itumbiara apreende R$ 59 mil em agrotóxicos contrabandeados

Próxima

Proteção da propriedade intelectual é pilar da longevidade empresarial