Fonte: Gazeta do Povo 27/09/23
Era o início da madrugada do feriado de 7 de Setembro quando, em uma fiscalização de rotina, policiais federais da Delegacia de Foz do Iguaçu (PR) e uma equipe do Batalhão de Fronteira (BPFron) da Polícia Militar (PM) do Paraná avistaram uma embarcação suspeita navegando pelo rio Paraná, no lago de Itaipu, na fronteira entre Brasil e Paraguai. O rio é rota frequente das quadrilhas que praticam os mais diversos crimes transfronteiriços, desde o contrabando de cigarros e de eletrônicos até o tráfico de drogas, armas e munições. O delito da vez era o contrabando de defensivos e pesticidas agrícolas, que está em alta e movimenta um mercado bilionário.
A embarcação que navegava pelo rio Paraná carregava 100 litros desses produtos distribuídos em cinco diferentes volumes. O destino seriam as lavouras brasileiras, caso não fossem retirados de circulação.
Segundo a Polícia Federal (PF), apesar deste ser um crime que não para, este período do ano é quando se intensifica o contrabando, paralelo ao início do ciclo de cultivo da soja no Brasil. O país é o maior produtor do grão no mundo, com uma produção que no ciclo 2022/23 foi de quase 155 milhões de toneladas, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A cultura responde por quase um quarto de toda produção de grãos brasileira. A última safra bateu recorde de cultivo, com mais de 317 milhões de toneladas.
No caso registrado na primeira semana deste mês, o único ocupante do barco que navegava pelo rio Paraná foi interceptado no momento em que a carga chegava a solo brasileiro pelo chamado porto clandestino – uma clareira aberta às margens da mata que protege o rio com uma estrutura rústica e precária, mas suficiente para desembarcar rapidamente barcos e lanchas, carregar veículos que os esperam e, para a partir dali, ganharem a estrada.
“Naquele dia, os policiais realizavam patrulhamento no rio quando avistaram um caiaque atravessando para o lado brasileiro. Ao se aproximarem para a abordagem, o condutor se atirou na água e fugiu em direção à mata ciliar, abandonando a embarcação com 100 litros do produto ilegal”, informou a PF. O condutor não foi localizado pelos policiais, o que também é comum nesses casos de abordagens após os suspeitos fugirem a nado ou se embrenharem na mata. A embarcação e os pesticidas foram apreendidos e encaminhados à Delegacia da Receita Federal em Foz do Iguaçu.
O mercado de defensivos e pesticidas agrícolas ilegais no Brasil movimenta mais de R$ 15 bilhões por ano e já responde por um quarto dos produtos afins utilizados nas lavouras. A avaliação é do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social (Idesf).
A instituição tem sede em Foz do Iguaçu e desenvolveu um estudo apurado das rotas, perfil das quadrilhas, movimentação econômica e característica dos produtos que entram no Brasil. É justamente na fronteira onde o crime começa a ganhar corpo e forma no território nacional, mas integra uma longa e estruturada cadeia internacional.
Segundo o presidente do Idesf, Luciano Barros, a ação criminosa revela uma face preocupante do segmento. “O contrabando não é praticado somente no momento do plantio, mas o tempo todo para formar estoques em território nacional. Além disso, o agroquímico irregular que não chega pronto no Brasil conta com o contrabando da matéria-prima para que, em laboratórios clandestinos, façam o preparo do produto também ilegal e em solo brasileiro”, alertou.
Apesar de vindos do Paraguai, não é o país vizinho que produz os pesticidas ilegais. O Paraguai aparece na cadeia como mero importador. As cargas chegam legalmente até lá vindas da China, Estados Unidos, Índia, França, Alemanha, Reino Unido e Bélgica, avalia a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Barros lembra que esse esquema exigiu uma profissionalização das quadrilhas, que passaram a contrabandear todos os tipos de produtos, para tipos diversos de culturas e em fases diferentes de desenvolvimento. “Se a época é de plantio da soja, são trazidos agroquímicos para a soja; se é do milho, há produto para o milho; o mesmo para o arroz, para tudo. Além disso, nessa mesma rota, nas mesmas embarcações e as mesmas quadrilhas trazem drogas, de tudo. O que render mais dinheiro elas trazem. Ou seja, não são específicas para o segmento, mas se fortaleceram muito com ele”, alertou.
Para o presidente do Idesf, entre as principais facilidades às organizações criminosas no território brasileiro está a falta de simetria na legislação envolvendo todos os países do entorno. “Essa é uma condição primária e de extrema importância. Para o enfrentamento a esse crime deveria haver uma simetria de legislação entre os países do entorno, principalmente da América do Sul, onde há uma maior facilidade de importação das matérias-primas e de produtos que no Brasil, por exemplo, são proibidos”, avaliou, ao considerar que é no Brasil que estão as maiores áreas produtoras e que os contrabandistas aprenderam que há um mercado importante para abastecer.
“Foram aprendendo que dá lucro, muito lucro, e esse lucro é o que movimenta todo esse mercado gigantesco e ilegal, que atinge toda a população, até a mesa do consumidor final”, lamentou.
Mercado vem sendo testado
Tanto na avaliação da PF quanto na do Idesf, esse é um mercado que vem sendo testado ao longo de décadas. Entra no rol das avaliações das organizações criminosas o estudo e a descoberta das melhores rotas a serem seguidas, assim como quais produtos são mais lucrativos e qual a melhor aceitação no mercado. “E assim elas crescem em escala exponencial. São inúmeras quadrilhas que operam no segmento, desde as já profissionalizadas até os que fazem o transporte formiguinha, com cargas menores”, apontam as investigações da PF.
A rota utilizada para o contrabando de defensivos agrícolas no Brasil é praticamente a mesma das drogas e dos cigarros ilegais. O que diferencia neste caso é o mercado consumidor: as lavouras de Norte a Sul do Brasil.
“O contrabando de defensivos utiliza das mesmas estruturas do tráfico de drogas. Passam pela fronteira das mais diversas formas, se aproveitam da corrupção e envolvimento de entes públicos que facilitam o transporte de mercadorias e se intensificam nos momentos cruciais para o plantio e desenvolvimento das lavouras quando são necessárias as aplicações de produtos no campo. Esse é um segmento do contrabando que cresce e se desenvolve”, alertou Luciano Barros.
Além do Paraná, sobretudo em cidades estratégicas e que funcionam como importantes entroncamento rodoviários, há identificação de expressivos depósitos de pesticidas ilegais em São Paulo. A escolha é estratégica e de olho na logística. Dali as cargas partem, com facilidade, para todas as regiões consumidoras.
No levantamento feito pelo Idesf, quatro importantes crimes ligados ao mercado ilegal de agroquímicos ficaram evidenciados: o primeiro é o contrabando propriamente dito, depois a identificação do roubo de cargas formais em fazendas, em centros de distribuição legalizados e cargas nas estradas.
Em seguida vem a falsificação de produtos, prática muito atrelada ao contrabando de matéria-prima, conciliado a um parque gráfico nacional que produz embalagens como se fossem produtos originais e certificados. Na quarta modalidade que vem crescendo e muito no país está o desvio de finalidade e de utilização de produtos que, manipulados, podem se transformar em análogos a defensivos e pesticidas, mas que não têm eficácia na aplicação. “Nestes casos são empresas brasileiras importando a matéria-prima de domissanitários, como produtos para piscinas, desinfetantes e outros similares e se desvia a finalidade, encaminhando para laboratórios clandestinos que os prepararam como defensivos agrícolas para utilização nas lavouras em forma de algicidas, inseticidas, fungicidas”, identificou o Idesf.
Nas lavouras em que se recebe esse combo, o risco é ainda maior e iminente: além de não funcionar para o que se espera, há o risco de contaminação do solo, de mananciais e dos alimentos propriamente ditos que vão chegar à mesa do consumidor final.
“E este talvez seja o mais atingido em toda essa cadeia criminosa”, lamentou Barros. Os levantamentos realizados pelo Idesf revelam que cerca de 25% de todos os defensivos utilizados no Brasil não estão em conformidade com a legislação brasileira. Segundo a Embrapa, em 2021 o Brasil utilizava cerca de 300 mil toneladas de defensivos nas lavouras. Equivale dizer que 75 mil toneladas podem ter origem incerteza ou duvidosa: contrabandeados, falsificados, provenientes de roubos ou furtos ou que são de uso proibido.
“O que temos observado é um crescimento do contrabando principalmente de produtos que tiveram o uso restrito ou proibido no Brasil, mas que nos países próximos a importação e uso não são proibidos. Por isso, mais uma vez, a necessidade de uma simetria de legislação e vejo o Brasil como um líder importante para comandar isso”, reforçou Barros.
O foco das quadrilhas está no cinturão agrícola brasileiro. “E operações constantes revelam que os grandes estoques estão no oeste, noroeste, norte e noroeste de São Paulo, que servem o centro-oeste do país, servem ao sul da região Nordeste, ao Norte do Brasil. As quadrilhas descobriram que se trata de um excelente ponto de armazenamento e manipulação e depois envio”, avaliou o presidente do Idesf.
Entre os exemplos está uma operação realizada nos meses de julho e agosto envolvendo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) e a Polícia Rodoviária Federal (PRF), que resultou na apreensão de cerca de 150 toneladas de defensivos irregulares no estado de São Paulo.
Na rota terrestre, a BR-163, que corta o país desde o oeste gaúcho até o Pará, é o trajeto preferido: são quase 4,5 mil quilômetros. “No sul se está muito próximo das fronteiras por onde os produtos entram e a rodovia passa pelo centro-oeste produtor brasileiro e o norte, onde também estão as grandes áreas produtoras. A BR-263 é o mais importante corredor para a prática criminosa dos agroquímicos ilegais”, detectou.
Na lista aparecem ainda outras importantes rotas utilizadas para as atividades ilegais, como a BR-277 e a BR-369 no Paraná. A BR-277 corta o estado de ponta a ponta e acaba em cima da Ponte Internacional da Amizade, em Foz do Iguaçu, na fronteira com o Paraguai. O mais importante corredor logístico rodoviário do estado é o preferido dos contrabandistas que precisam acessar o interior paulista. Da BR-277, o trajeto passa para a BR-369 em Cascavel (PR), rumo ao norte do estado, na divisa com o estado de São Paulo. “As rotas preferenciais colocam em evidência cidades como Cascavel (PR), Dourados (MS) e a região de Presidente Prudente (SP). Ou seja, as quadrilhas têm uma forma empresarial para transportar, manipular e comercializar esses produtos em um tipo criminal consolidado no Brasil”, alertou.
Crime bárbaro
Para Luciano Barros, o contrabando e a falsificação de defensivos podem ser considerados um dos “crimes mais bárbaros” à população. “Ele vai atingir o consumidor final, aquele que recebe o alimento e não sabe que foi submetido a essas aplicações, diferente de outros produtos ilegais, como o cigarro contrabandeado, porque quem fuma sabe ser um cigarro ilegal”.
O levantamento do Idesf também avançou nos indícios de como o produto chega ao campo. Segundo Barros, em muitos casos, o produtor rural não tem ideia de se tratar de produto irregular, fruto de um crime. “Há o fornecimento direto aos agricultores, há revendas que fazem a transação comercial como se fosse fruto de importação legal com emissão de notas ficais e há, ainda, empresas que operam como fornecedoras certificadas que recebem o produto como se originais fossem e os comercializam sem saber se passar por um produto ilegal, falsificado ou produto de um roubo. Empresas laranjas entram na jogada para o fornecimento de notas, por exemplo. Existe uma série de classes, os que sabem que estão comprando um produto ilegal e os que não sabem”, alertou.
Para aqueles que têm ciência de estarem adquirindo um produto ilegal, Barros lembrou que ainda há outro aspecto a se analisar. Não existe uma política de logística reversa para destinação correta das embalagens e sua destinação acaba refletindo em mais um crime ambiental, como enterrá-las, por exemplo, criando um novo passivo.
Embarcações carregadas com pesticidas são afundadas por contrabandistas
Outro ponto alertado pelo Idesf corresponde à contaminação da água. Não tem sido incomum que, ao perceber que serão pegos ou terão as cargas interceptadas pelas forças de segurança, condutores das lanchas – como a apreendida em 7 de setembro no rio Paraná – afundarem o veículo no meio do rio com toda a carga. “Esse agroquímico vai para o rio, contaminando peixes, a água. É um crime com várias vertentes e riscos”, considerou.
Barros destaca que a legislação tem sido branda e reafirmou a necessidade de avanços nas leis com o aumento de fiscalização e penas até se chegar ao ponto em que o crime não compense. “O Brasil tem plenas condições de liderar no Mercosul ações para trazer simetria à legislação em países vizinhos. O Paraguai, por exemplo, pode importar gemas que o Brasil não pode, precisa haver uma legislação boa para todos. Temos no Mercosul locais de plantio muito parecidos, com a necessidade de aplicação de produtos similares e temos praticamente o mesmo clima, o mesmo solo. Esta unificação de legislação com mais firmeza e fiscalização inibiria o mercado ilegal”, avaliou.
Barros lembra aos agricultores que produtos certificados oferecem mecanismos de fiscalização, de rastreabilidade, com tecnologias que permitem ao comprador identificar se a revenda é formal e se o produto é original, com origem de procedência. “No Paraná existem muitas cooperativas com muitos cooperados e esses produtos ligados a elas ficam blindados a esse tipo de crime, porque há certificação de origem e de procedência. É extremamente importante estar sempre atento às informações que possam certificar estes dados”, destacou.
Ele pontua ainda que todos os elos que fazem parte da grande cadeia ilegal podem ser responsabilizados, mesmo aquele que recebe e aplica um agroquímico na ponta, que pode responder criminalmente. “Além da conscientização dos agricultores sobre a importância das cadeias formais, é importante que se intensifiquem as campanhas para demonstram os malefícios que os produtos ilegais ou falsificados trazem”.
Investigações
No Paraná, uma quadrilha suspeita de transporte do produto ilegal está na mira da Polícia Civil. O órgão investiga uma organização criminosa sediada em Francisco Beltrão. Em operação deflagrada no último mês foram cumpridos quatro mandados de busca e apreensão. A polícia afirmou que o suspeito utilizava veículos da própria empresa para atividades ilícitas de transporte dos pesticidas. Ele deve responder pelos crimes de associação criminosa, transporte de produto ilegal e denunciação caluniosa.
“As investigações iniciaram após o próprio suspeito registrar boletim de ocorrência de apropriação indébita de um veículo. Conseguimos apurar que ele utilizou as forças de segurança para resolver uma questão de desacordo comercial e constatamos o crime de transporte ilícito de agrotóxicos”, explicou a Polícia Civil ao reforçar que denúncias anônimas sobre a prática bilionária e ilegal sejam feitas pelos números 197, da Polícia Civil, ou pelo 181, do Disque-Denúncia.
Projeto de Francischini quer mais rigor para crime de falsificação ou adulteração de defensivos
D autoria do ex-deputado paranaense Delegado Francischini, o projeto de lei 9.271/17 segue tramitando na Câmara dos Deputados. O projeto pede a criminalização para falsificação ou adulteração de defensivos ou pesticidas, o que pode incluir pena de dois a quatro anos em regime inicialmente fechado (reclusão) e multa.
O texto também pede a “alteração do Código Penal para prever reclusão de dois a seis anos para o furto e roubo destes produtos, seus componentes, e afins”. Pelo texto, o contrabando de defensivos e de substâncias não autorizadas para comercialização pelas autoridades poderia levar o criminoso a ter a pena aumentada. A proposta também inclui, no rol dos crimes hediondos “a falsificação, a corrupção, a adulteração ou a alteração dos produtos”.
Em entrevista à Agência Câmara, o autor do PL reforçou que o contrabando e a falsificação dos pesticidas prejudicam a saúde do trabalhador rural e do consumidor final, e que o “uso dos produtos ilegais traze consigo a falta de informação segura, o que pode levar à contaminação dos solos, das águas superficiais e subterrâneas e dos alimentos, causando efeito negativo aos organismos terrestres e aquáticos, além de intoxicar o ser humano”. Para Francischini, a criminalização e a aplicação de penas vão coibir a utilização de defensivos agrícolas adulterados ou contrabandeados.