Os laboratórios farmacêuticos Aché e Eurofarma têm firmado, nos últimos anos, parcerias em pesquisa com o Centro de Química Medicinal (CQMED), sediado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com o objetivo de desenvolver moléculas potentes e seletivas para proteínas-alvo específicas que possam resultar em novos medicamentos.
As pesquisas colaborativas seguem o modelo de inovação aberta. O centro foi criado com apoio da FAPESP por meio do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (PITE), em cooperação com o Structural Genomics Consortium (SGC) – consórcio internacional de universidades, governos e indústrias farmacêuticas para acelerar o desenvolvimento de novos medicamentos.
O modelo estabelece que todo o conhecimento gerado até a fase de validação de moléculas é de domínio público e pode ser usado para o avanço das pesquisas em fase pré-clínica e clínica por grupos acadêmicos ou indústrias farmacêuticas em qualquer parte do mundo. Após o término dessa fase pré-competitiva, as farmacêuticas que conseguirem aprimorar ainda mais as moléculas iniciais e comprovar a eficácia terapêutica de compostos derivados em estudos clínicos poderão patenteá-las.
Recente não só no Brasil, esse tipo de parceria público-privada voltada ao desenvolvimento de novos fármacos por meio da pesquisa em acesso aberto tem atraído o interesse das indústrias farmacêuticas no país em razão da série de vantagens para suas estratégias de pesquisa, desenvolvimento e inovação. Além de Aché e Eurofarma, o CQMED pretende fechar até o fiim de 2019 acordos de pesquisa com outras três empresas farmacêuticas ou de biotecnologia.
“A parceria com as indústrias farmacêuticas é fundamental para a identificação e o desenvolvimento de moléculas que possam resultar em novos medicamentos”, disse Paulo Arruda, professor da Unicamp e coordenador do CQMED, à Agência FAPESP.
O desenvolvimento de uma nova droga hoje pode levar uma década e custar o equivalente a US$ 1 bilhão – um investimento impeditivo para muitas farmacêuticas nacionais. E de cada 10 mil moléculas desenvolvidas, apenas uma chega ao final do processo de pesquisa com evidências científicas robustas para se obter um novo fármaco, indicam dados da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma).
A pesquisa cooperativa e em acesso aberto com um centro, como o CQMED, permite dividir o risco, economizar recursos e reduzir a redundância na pesquisa, ao evitar testes desnecessários com moléculas que não foram aprovadas anteriormente.
Além disso, possibilita atacar alvos terapêuticos pouco ou nunca estudados, avaliam representantes das indústrias farmacêuticas.
“Normalmente, trabalhamos com alvos terapêuticos que já têm uma certa validação no mercado. O consórcio do CQMED é importante porque traz alvos terapêuticos totalmente radicais, com os quais ninguém até então trabalhou”, disse Cristiano Ruch Werneck Guimarães, diretor do núcleo de inovação radical do Aché.
A empresa foi a primeira a se associar ao CQMED, em 2016, após inaugurar um laboratório de design e síntese de moléculas. O laboratório permitiu à farmacêutica contribuir em igualdade de condições nas pesquisas feitas em parceria com o centro, avaliou Guimarães.
Enquanto os pesquisadores do CQMED se dedicam aos estudos de biologia básica – que são o foco do centro –, os pesquisadores da empresa podem se voltar à parte de química medicinal, ou seja, de desenvolvimento de moléculas. A comunicação entre empresa e universidade é constante e as moléculas feitas pelo Aché são avaliadas no CQMED.
“A parceria com o CQMED permite acelerar muito nossa inovação e nos dá condições de ser um competidor relevante na pesquisa farmacêutica mundial ao chegar ao mercado primeiro com um fármaco para um alvo que ninguém nunca estudou”, afirmou Guimarães.
O Aché tem dois projetos de pesquisa com o CQMED, voltados a desenvolver inibidores de enzimas ligadas à proliferação celular (quinases) relacionadas ao desenvolvimento de câncer. A colaboração nos projetos foi formalizada em 2017 quando o CQMED se tornou uma Unidade de Inovação da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii). Por meio do acordo, a Embrapii passou a dar uma contrapartida financeira a cada novo projeto entre o CQMED e as empresas. No mesmo ano, a Eurofarma também iniciou sua colaboração com o centro da Unicamp (leia mais em: http://agencia.fapesp.br/27151).
Com investimento inicial de R$ 8,4 milhões por seis anos, o acordo visa pesquisar novas moléculas para o desenvolvimento de medicamentos voltados ao tratamento de câncer pelo Aché, e anti-infecciosos, como antibióticos e antiparasitários, pela Eurofarma.
“A parceria com o CQMED possibilita a realização de projetos para desenvolver moléculas para alvos terapêuticos que ainda não são explorados internacionalmente. Não conseguiríamos fazer esses estudos sozinhos”, disse Gabriela Barreiro, gerente de desenvolvimento pré-clínico da Eurofarma.
Outro benefício do acordo, na avaliação de Barreiro, é possibilitar a formação de pesquisadores em desenvolvimento de fármacos no país. Por meio dos projetos, a empresa mantém pós-doutorandos em dois laboratórios de química orgânica da Unicamp.
“O desenvolvimento de fármaco, desde a concepção até chegar à fase clínica, em humanos, ainda é algo muito novo e incipiente no Brasil. Há pouquíssimos profissionais que sabem fazer isso no país. Nesse sentido, os projetos em parceria com o CQMED possibilitam formar esses profissionais”, disse Barreiro.
Do gene à molécula
Para chegar ao desenvolvimento de uma nova droga, os pesquisadores do CQMED precisam trilhar o caminho que chamam de “do gene à molécula”.
O primeiro passo dessa trajetória é a seleção de potenciais alvos terapêuticos em parceria com as indústrias farmacêuticas. Os alvos são proteínas humanas do tipo quinase, responsáveis por regular processos importantes do organismo, como divisão, proliferação e diferenciação celular. A falha nas funções de determinadas quinases está presente na maioria dos tipos de cânceres humanos e pode desencadear uma série de doenças.
Embora sejam consideradas alvos prioritários para o desenvolvimento de fármacos, estima-se que apenas 10% das mais de 500 quinases identificadas no genoma humano já tenham sido bem estudadas. “O foco de pesquisa do centro é justamente esse universo de proteínas pouco estudadas”, disse Katlin Massirer, coordenadora do CQMED.
Por meio de tecnologias disponíveis no laboratório, os pesquisadores do centro conseguem isolar e clonar o gene produtor de uma quinase-alvo e introduzi-lo em uma bactéria para produção em larga escala.
Após obter a proteína recombinante de bactérias, ela é colocada em contato com pequenas moléculas desenhadas e sintetizadas pelos pesquisadores, chamadas inibidores químicos. Essas moléculas são capazes de se ligar e inibir a proteína quinase de interesse.
“Esse é um passo crucial para a descoberta de moléculas que possam vir a funcionar no corpo humano”, explicou Massirer.
Por meio de uma série de técnicas, os pesquisadores determinam a estrutura da proteína e simulam sua ligação com os compostos químicos desenvolvidos a fim de avaliar o encaixe entre as moléculas, que precisa funcionar como uma “mão em uma luva”. Com base nisso, eles aprimoram ou desenvolvem novos compostos de modo capazes de se ligar àquela proteína específica.
Essas moléculas mais refinadas, altamente específicas e seletivas, recebem a denominação de “sondas químicas”. Elas permitem entender a função biológica da proteína-alvo e são precursoras de medicamentos que serão desenvolvidos pelas indústrias farmacêuticas. Ao longo dos quatro anos de existência do CQMED, os pesquisadores do centro conseguiram desenvolver duas sondas químicas (leia mais em http://agencia.fapesp.br/29699).
“Temos o compromisso de fornecer essas moléculas iniciais para as indústrias farmacêuticas. Além de deter o conhecimento ao longo de todo esse processo, as empresas com as quais temos parceria podem fazer modificações nessas moléculas iniciais para chegar mais próximo de um medicamento”, disse Massirer.
Todos os dados de experimentos feitos no CQMED são armazenados em um banco de dados de modo a serem preservados, facilmente recuperados e compartilhados.
O sistema de gerenciamento de dados do centro está em conformidade com as novas diretrizes da FAPESP sobre armazenamento e compartilhamento de dados de pesquisas apoiadas pela Fundação, explicou Lucas Ferreira, gerente de tecnologia da informação do centro.
“Os dados precisam ficar armazenados permanentemente de modo que, se um pesquisador de fora do centro quiser ter acesso a eles para replicar um experimento, ele possa acessá-los facilmente”, disse Ferreira.
Elton Alisson | Agência FAPESP