REVISTA FACTO
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Abr-Jun 2015 • ANO IX • ISSN 2623-1177
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PROPRIEDADE INTELECTUAL NO BRASIL: UMA POLÍTICA EM APUROS
//Artigo

PROPRIEDADE INTELECTUAL NO BRASIL: UMA POLÍTICA EM APUROS

No mundo industrializado, a política de propriedade intelectual (PI) vem se deslocando cada vez mais para o centro das estratégias governamentais e empresariais, à medida que o processo de globalização financeira e industrial se consolida e, em paralelo, crescem de importância as inovações de base científicotecnológica nos processos industriais. A primeira grande movida desse tema para o núcleo central de decisões nesses países talvez tenha sido a harmonização realizada no âmbito da OMC, cuja resultante mais relevante foram os acordos TRIPs. Nos países e regiões líderes – EUA, União Europeia e Japão –, há muitos anos a política de PI está localizada no centro das respectivas políticas industriais, mesmo que essas não existam de modo consolidado, como é o caso dos EUA, onde ela é governada em grande parte pelas políticas de defesa e de relações exteriores. No Brasil, infelizmente a política de PI não vem tendo o destaque que merece. Uma evidência disso foi a importância relativamente pequena dada a ela nas três versões de política industrial formuladas e postas em execução durante os dois mandatos do presidente Lula e durante o primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff1.

Para a indústria de transformação, e aqui enfatizamos as cadeias produtivas da química fina e da biotecnologia, a política de PI tem particular importância, haja vista o dinamismo dessas cadeias em muitos países. Ao lado da indústria diretamente vinculada à defesa nacional (nos EUA) e da indústria da comunicação e informação, são elas as que mais investem em pesquisa e desenvolvimento.

Se, por um lado, a política de PI em seu exercício está grandemente vinculada à política industrial, quando a examinamos tendo em vista os impactos societários de suas normas e práticas, ela tem a característica de possuir grande transversalidade, alcançando inúmeros setores da vida nacional, além da indústria. As políticas sociais (com especial ênfase na política de saúde), as políticas para a agricultura e a pecuária, as atividades de investigação científica e tecnológica, entre outros, são setores diretamente atingidos pelos desafios da PI. Os apuros atuais da política de PI no Brasil incidem concomitantemente nos dois principais campos constitutivos dessa política: em primeiro lugar na sua execução; em segundo, na sua formulação e coordenação.

Criado em 1970 e tendo como finalidade principal a execução das normas que regulam a PI, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) apresenta hoje em dia dificuldades importantes no cumprimento dessa missão. No plano operacional, há uma enorme carência de recursos materiais, humanos e de gestão que resultam num inadmissível tempo levado entre o depósito e a decisão final quanto ao patenteamento de um produto ou processo. Segundo documento recente do próprio INPI2, o denominado backlog do Instituto está acima de 14 anos para medicamentos de elevado consumo no País, bem como para o campo das telecomunicações. Em outros segmentos industriais relevantes, o número não é muito diferente. A Lei Brasileira de PI, no parágrafo único de seu artigo 40, prevê que nenhuma patente pode ter menos de 10 anos de vigência, independentemente do tempo decorrido entre o depósito da patente e a decisão final do INPI sobre a sua concessão. Ora, se o tempo médio de exame no INPI está acima de dez anos, o período de monopólio temporário garantido pela patente passará dos 20 anos dispostos nos acordos TRIPs. E a consequência direta desse fato é que as patentes deixam de ser um estimulo à inovação e se transformam em ferramenta de inibição da concorrência. De autoria da ABIFINA, tramita no STF uma Adin propondo a eliminação desse dispositivo. Vale observar que o depósito de uma patente estabelece uma expectativa de direito que esteriliza qualquer iniciativa de pesquisador ou industrial local em investir naquele tema específico. No terreno dos medicamentos, a inibição da concorrência agride frontalmente a nossa indústria de genéricos, carro-chefe do renascimento da indústria brasileira de medicamentos ocorrido desde o início da década passada. E, da mesma forma, agride os interesses da indústria brasileira que começa a trilhar os caminhos do desenvolvimento local de medicamentos originais. Em outros termos, o backlog protege a indústria que importa medicamentos patenteados e trabalha contra a indústria que produz medicamentos localmente. Além disso, ele inibe também as atividades locais de pesquisa e desenvolvimento com possibilidades de se transformar em produtos industriais.

A despeito da dedicação de seu quadro técnico, o INPI sofre de várias deficiências no terreno de pessoal4 e esse problema é, provavelmente, o principal componente do crescimento do backlog. Essa deficiência decorre de uma baixa atratividade da carreira em termos salariais, o que implica em altas taxas de rotatividade de examinadores recém-admitidos. Apenas para dar uma ideia do déficit de examinadores, a tabela indica o número de depósitos por examinador de patentes no INPI e no USPTO5 nos dias atuais. Acresce a deficiência quantitativa os handicaps qualitativos provocados pela demissão de recém-treinados examinadores, decorrentes da baixa atratividade salarial da carreira.

No terreno da formulação e da coordenação da política de PI, o problema é de outra natureza. O INPI foi criado em 1970 pela Lei 5.648 e teve a sua missão redefinida pela Lei de Patentes (9.279, de 1996), que em seu artigo 240 dispõe que “O INPI tem por finalidade principal executar, no âmbito nacional, as normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função social, econômica, jurídica e técnica, bem como pronunciar- se quanto à conveniência de assinatura, ratificação e denúncia de convenções, tratados, convênios e acordos sobre propriedade industrial”.

A existência de economias complexas nas quais há atividade industrial relevante exige que, ao lado de organismos executores da política de PI, existam instâncias formuladoras dessa política. Isto porque, como já foi observado no início desse texto, os impactos da política de PI vão muito além do setor industrial desses países. Daí que os interesses desses setores devam ser levados em conta na construção da política. As instâncias formuladoras variam segundo os países e em seguida são relatados exemplos das mesmas em países-chave na questão de PI6. A presença de instâncias formais responsáveis pela construção das políticas é mais nítida nos países nos quais a consolidação do processo de industrialização foi mais  recente, como o Japão e a República da Coreia. Naquele, a política de PI está sob a responsabilidade do Intellectual Property Strategy Headquarters, organizado no gabinete do 1º ministro, por este presidido e do qual tomam parte todos os ministros de Estado. Na Coreia, a formulação da política está a cargo do Presidential Council on Intellectual Property, presidido pelo 1º ministro e composto por até 40 membros indicados pelo presidente da República. Na China, considerando as peculiaridades de seu regime político, a legislação indica que o executor da política é um Departamento de Administração Patentária que, sempre que mencionado na lei de patentes, leva um aposto – subordinado ao Conselho de Estado.

Na Alemanha, o órgão executor da política é vinculado a um ministério “transversal” – o Ministério da Justiça, o que sugere uma vontade política de conciliar os interesses de todos os setores da sociedade que são impactados pela política de PI. Na França, a instituição executora da política subordina-se, como no Brasil, ao Ministério do Comércio, que, entretanto, abriga um Conseil Supérieur de la Propriété Industrielle, de caráter consultivo, presidido pelo ministro da pasta. Na consolidação das leis de patentes dos Estados Unidos da América, está disposto que “The United States Patent and Trademark Office is established as an agency of the United States, within the Department of Commerce. In carrying out its functions, the United States Patent and Trademark Office shall be subject to the policy direction of the Secretary of Commerce” [grifo meu].

Esses exemplos sugerem a importância de instâncias formuladoras da política sobre os respectivos órgãos executores. E foi essa evidência que gerou, no Brasil, a criação de um Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (Gipi) no âmbito da Camex/Mdic. O ato de criação foi um decreto presidencial publicado em 21 de agosto de 2001 que conferia ao Grupo a atribuição de “propor a ação governamental no sentido de conciliar as políticas interna e externa visando o comércio exterior de bens e serviços relativos a propriedade intelectual”. Esse decreto ainda determinava a participação dos seguintes ministérios: da Agricultura e do Abastecimento; da Ciência e Tecnologia; da Cultura; do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; da Justiça. Sua composição foi ampliada pelo decreto de 11 de abril de 2005, com a inclusão dos ministérios: das Relações Exteriores; da Saúde; da Casa Civil da Presidência da República; do Meio Ambiente. E mais uma vez ampliado pelo decreto de 28 de julho de 2008 com a inclusão do Ministério da Fazenda e da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

A atribuição do Gipi, bem como a sua composição, demonstra com clareza que a ele deveria caber a formulação da política a ser executada pelo INPI, em especial as diretrizes para análises de patentes. Lateralmente, vale  lembrar que a não participação do INPI no Gipi também denota a preocupação de separar as funções do órgão formulador do órgão executor da política. Entretanto, o desenvolvimento dos fatos não honrou essas disposições. O colegiado vem paulatinamente perdendo sua relevância e, o que é mais importante, teve crescentemente suas decisões ignoradas pelo INPI. A última reunião do Gipi ocorreu há mais de um ano.

Dada a já mencionada transversalidade da política de propriedade intelectual, a existência de um órgão colegiado com a missão de formular essa política é essencial tanto para que ela possa representar as visões dos componentes governamentais afetados, quanto para orientar a organização e a atuação do órgão executor da mesma (que não deixa de ser uma dimensão da política). Entretanto, a experiência do Gipi demonstra com clareza que um órgão com esse grau de transversalidade necessita subordinar-se a uma instância governamental mais elevada do que qualquer dos órgãos que o compõem.

A importância da política de propriedade intelectual numa economia que, como a nossa, está entrando na era da inovação como motor do desenvolvimento recomenda que a coordenação dessa política esteja situada no nível mais elevado da administração federal. Se não no gabinete presidencial, como na Coreia e no Japão, naquela instância que tem como missão a coordenação das ações e políticas de governo: a Casa Civil da Presidência da República.

Outros dois aspectos que contribuíram para a falência do Gipi foram: (1) a indicação de representantes ministeriais aos quais faltava capacidade decisória, e (2) a insubordinação da direção do INPI em relação às decisões daquele colegiado. Essa insubordinação ficou clara por ocasião da decisão do Gipi quanto ao patenteamento de polimorfos e de patentes de segundo uso em medicamentos.

Apesar de fragilizada, a política de PI no Brasil não está parada. E, lamentavelmente, move-se para o lado errado. Como sabemos, o texto da Lei de Patentes no Brasil, sancionada em 2006, foi excessivamente permissivo quanto aos limites impostos pelos acordos TRIPs, absorvendo conceitos da agenda TRIPs Plus demandados pelos importadores de medicamentos acabados que detêm patentes. Em 2005, foi apresentado à Câmara dos Deputados um projeto de lei (4.961/2005, de autoria do deputado Mendes Thame) que propunha a admissibilidade de patenteamento de produtos naturais não modificados, não patenteáveis pela letra atual da lei. A despeito de ter sido arquivado por duas vezes, esse projeto foi desarquivado e atualmente avança na Câmara dos Deputados. Sua aprovação significará um retrocesso na nossa já combalida política de PI.

1 PITCE, 2004; PDP, 2008; Brasil Maior, 2011.
2 INPI, Plano de Modernização Operacional: Uma agenda para incrementar a capacidade de resposta do INPI. Janeiro de 2015, mimeo.
3 Para marcas e desenho industrial, a derivada de crescimento foi ainda maior. Respectivamente, 74% e 604%.
4 Por falta de espaço, não tocarei aqui nas deficiências em tecnologia de informação, problema igualmente grave.
http://www.uspto.gov/corda/dashboards/patents/main.dashxml?CTNAVID=1005
6 As informações que se seguem foram obtidas no sítio da Organização Mundial da Propriedade Intelectual. http://www.wipo.int/wipolex/en/

Reinaldo Guimarães
Reinaldo Guimarães
2º vice-presidente da ABIFINA.
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