REVISTA FACTO
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Out-Dez 2016 • ANO X • ISSN 2623-1177
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//Artigo

Entre os nós da prévia anuência

Tratar as dificuldades relacionadas à exigência legal da anuência prévia para concessão de patentes farmacêuticas no Brasil como sendo uma disputa de egos entre a Anvisa e o INPI é um erro. Em dezembro de 1999, quando foi editada a medida provisória que inseriu a Anvisa no processo de concessão de patentes farmacêuticas, a agência sanitária sequer tinha completado seu primeiro ano de existência. Ainda assim, ao longo do tempo, estruturou-se no sentido de avaliar os pedidos de patentes com apurado rigor técnico, segundo as melhores práticas de análise dos requisitos de patenteabilidade.

É bom lembrar que a Lei de Patentes fora promulgada em 14 de maio de 1996, após intenso debate público sobre suas possíveis consequências em várias áreas, particularmente aquelas relacionadas aos processos e produtos farmacêuticos. A medida provisória que incluiu o Art. 229-C e criou a anuência prévia foi assinada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, atendendo à demanda do sr. José Serra, então ministro de Estado da Saúde. Depois de 15 reedições, a MP foi convertida na Lei nº 10.196, em 14 de fevereiro de 2001.

Na justificativa apresentada pelo ministro da Saúde para criar a obrigação da anuência prévia da Anvisa para patentes farmacêuticas, por meio de uma medida provisória, ele argumentava ser necessário garantir “os melhores padrões técnicos no processo de decisão de patentes farmacêuticas, à semelhança dos procedimentos aplicados pelos mais avançados sistemas de controle de patentes e de vigilância sanitária em funcionamento nos países desenvolvidos”.

Com a inclusão do Art. 229-C, a concessão de patentes farmacêuticas tornou-se um ato complexo, conforme entendimento da própria Advocacia Geral da União (AGU), contido em um dos seus últimos pareceres sobre o tema. Ou seja, tais patentes só podem ser concedidas no Brasil mediante a manifestação de vontade expressa pela Anvisa e pelo INPI. Ao determinar que as patentes dependeriam de prévia anuência da Anvisa, gerou-se o entendimento de que a vontade da Anvisa, nos casos de patentes farmacêuticas, precede a do INPI e que, em não havendo anuência da Anvisa, os pedidos de patentes devem ser negados pelo INPI.

Ao longo desse tempo, muito se falou ou se argumentou sobre tal disposição do sistema legal brasileiro, objeto da vontade do Poder Executivo, expressa quando editou a MP e, depois, do Poder Legislativo, quando a converteu em lei. Há argumentos favoráveis e contrários à sua pertinência, questionamentos sobre sua constitucionalidade, debates sobre seus impactos nos prazos para análise dos pedidos de patentes no Brasil, desconfortos pelo fato do sistema envolver dois órgãos diferentes e dúvidas sobre os critérios utilizados pelas duas instituições para decisão sobre um pedido de patente farmacêutica. De um lado, acumularam-se na Justiça centenas de processos questionando o sistema e o papel atribuído pela Lei à Anvisa. De outro, o INPI nunca publicou uma negativa de um pedido de patente não anuído pela Anvisa. Ou seja, a determinação legal tornou-se inócua, uma vez que a participação do órgão regulador de medicamentos nunca gerou efeito prático.

Em 2011, depois de 10 anos da inclusão do dispositivo na Lei de Patentes, houve um primeiro esforço articulado entre o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, ao qual está vinculado o INPI, e o Ministério da Saúde, ao qual se vincula a Anvisa, no sentido de tornar mais claros e transparentes os procedimentos das duas instituições. Foi criado um Grupo Interministerial que gerou a publicação de uma portaria, assinada pelos dois Ministérios, estabelecendo que os pedidos de patentes farmacêuticas primeiro seriam analisados pela Anvisa e depois pelo INPI. À luz do que diz a Lei, ficou definido que os pedidos não anuídos pela Anvisa seriam negados pelo INPI, que analisaria apenas os processos anuídos pela agência reguladora.

Diante da decisão dos Ministérios, a Anvisa editou norma (RDC nº 21/2013) definindo que apenas os pedidos de patentes relacionados a produtos que implicassem risco sanitário ou aqueles envolvendo produtos de interesse das políticas públicas de saúde seriam analisados pela agência. Ao se fixar nos processos com significado sanitário, a Anvisa deixou de analisar a grande maioria dos pedidos. Mesmo depois de todo o esforço institucional, o INPI assumiu a postura de não publicar decisões indeferindo o registro da patente nos casos de não anuência da Anvisa, alegando impasse jurídico.

Ao largo das posições das instituições sobre o cumprimento do que determina o Art. 229-C, grupos de interesse se movimentam e se aproveitam das imperfeições do sistema patentário brasileiro. As posições adotadas pelo INPI sobre a anuência prévia determinada em lei, sua falta de estrutura para analisar o conjunto de pedidos de patentes – atualmente o instituto está analisando processos requeridos há cerca de 10 anos – e a judicialização permanente das decisões acarretam um efeito comum: geram expectativas ou prolongam direitos patentários, nem sempre totalmente elucidados.

No momento, anuncia-se um possível “acordo” entre Anvisa e INPI para enfrentar os problemas relacionados com a anuência prévia. Trata-se de uma ótima notícia que, no entanto, parte de um argumento equivocado na medida em que se propõe a pôr fim à disputa de egos entre Anvisa e INPI. Ao se eleger esse como sendo o problema a ser resolvido, ficarão de lado todas as reais motivações das incertezas do sistema que são de natureza econômica e ideológica.

É possível defender o sistema com o desenho que tem hoje, depois da inserção do Art. 229-C. O acordo TRIPs prevê salvaguardas que abrigam a medida adotada pelo governo brasileiro em 2001, quando instituiu a prévia anuência por meio de uma alteração na Lei de Patentes. Tais salvaguardas reconhecem que a concessão indevida de direitos de patentes farmacêuticas pode gerar graves danos aos sistemas nacionais de saúde. Uma forma de tornar a análise mais robusta e mitigar vieses é o envolvimento de diferentes olhares na análise do cumprimento dos requisitos de patenteabilidade. Nesse sentido, nada impede que os órgãos de regulação sanitária possam atuar nos processos de patentes.

Uma análise equilibrada sobre a efetividade de um sistema patentário baseado em ato complexo deve se sustentar em dados que indiquem se patentes merecidas do ponto de vista legal deixaram de ser concedidas ou se houve concessões indevidas. Não podem ser suprimidos direitos legítimos de exclusividade, mas também não pode a sociedade pagar pelos custos de determinado monopólio não suportado em bases técnicas, científicas e legais.

Os mais velhos ensinam que os remédios para problemas importantes são necessariamente amargos. Todos sabem, embora não reconheçam, que os impasses relacionados ao tema da anuência prévia envolvem a Anvisa e o INPI, mas não são de natureza psicológica e nem encontram soluções em livros de Freud. Qualquer “acordo” que não passe pelo enfretamento das questões econômicas e políticas evolvidas no assunto não terá amargor suficiente para evitar que a anuência prévia continue sendo uma cortina de fumaça sobre as reais debilidades do sistema patentário brasileiro. No Estado de direito democrático, a única forma de se revogar uma lei é por meio da aprovação de outra lei, ainda que o caminho seja azedo, além de amargo.

Dirceu Barbano
Dirceu Barbano
Farmacêutico e ex-presidente da Anvisa.
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