REVISTA FACTO
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Out-Dez 2014 • ANO VIII • ISSN 2623-1177
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EM CRISE DE IDENTIDADE, BRASIL PRECISA DEFINIR UM PROJETO DE ESTADO
//Entrevista Carlos Lessa

EM CRISE DE IDENTIDADE, BRASIL PRECISA DEFINIR UM PROJETO DE ESTADO

Carlos Lessa, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), vivenciou distintos momentos do País enquanto economista, professor, intelectual e cidadão brasileiro. É dessas diferentes perspectivas que ele conversa com a FACTO sobre o que falta para o Brasil ter um projeto de Estado que atravesse governos e pavimente o caminho para o desenvolvimento de longo prazo. Para ele, o Brasil precisa, antes de tudo, discutir o que quer para o futuro e ultrapassar um complexo momento de desconstrução da identidade nacional.

Falta ao Brasil um projeto estratégico de nação?

Nós não temos claro qual é o futuro que desejamos. Logo, não é possível formular com clareza qualquer política de longo prazo. Em todo o século XX, até 1980, era absolutamente claro na imaginação brasileira que o Brasil só chegaria a ser uma sociedade adequada, justa, se levasse para frente o desenvolvimento industrial. A industrialização era tida como uma diretiva para o País. Em 1980, a industrialização foi sendo progressivamente demonizada, como um movimento incapaz de dar ao Brasil condições razoáveis de vida.

Isso desenvolveu outro discurso: o Brasil só poderia chegar a seu futuro pelo processo de globalização. A palavra indústria foi perdendo espaço até na mídia. A expressão “desenvolvimento industrial” foi praticamente cancelada do vocabulário corrente. E o Brasil foi caminhando de maneira intensa, nos anos 90, em afirmar que só pela globalização poderia se tornar uma sociedade adequada.

E então aconteceu uma coisa que nunca vi em toda minha vida. Quando nasci o Brasil era uma sociedade cafeeira. Em 1980, já era a sétima economia industrial do mundo. Hoje pode ser a 12ª ou 13ª. Nunca imaginei ver o Brasil retroceder desta maneira. Cadeias produtivas complexas passaram a apresentar lacunas progressivas e crescentes. Houve um processo de desindustrialização, que foi acompanhado por um sucesso nas exportações de matérias-primas e produtos primários.

A partir dos anos 2000, o Brasil teve bom desempenho na exportação de minério de ferro, soja, algodão, açúcar, café, ou seja, voltamos a ser fornecedor de produtos básicos para o mundo e perdemos espaço em produtos industriais. Ao mesmo tempo, a indústria que existia no País foi sendo mutilada, perdendo posição em relação à economia global.

O que falta para o Brasil reverter esse movimento é uma política industrial?

Esta é a primeira pergunta que deveríamos fazer: é possível aumentar o mercado interno brasileiro sem levar à frente significativamente a industrialização? Estou absolutamente convencido de que não há como elevar o padrão de vida brasileiro de forma a reduzir as distâncias sociais sem desenvolvimento industrial intenso.

A segunda pergunta relevante: é possível levar a industrialização para o futuro sem ampliar a disponibilidade de energia para o brasileiro? O Brasil tem disponibilidade de energia inferior a um sexto dos países ditos centrais. Mas nem um projeto nacional, nem sequer a questão da energia foram discutidos nas eleições. O Brasil não estava em pauta. Não o Brasil de amanhã.

Qual seria o principal indicador de desenvolvimento do mercado interno?

Tenho certeza de que, se fosse feita uma pesquisa, os brasileiros elegeriam como principal índice de desenvolvimento a casa própria. Estamos colocando a casa própria como objetivo central de desenvolvimento econômico e social? Não. No lugar, estamos colocando a aquisição de bens duráveis: geladeira, televisão etc. Estes são os setores para os quais foi direcionada a política econômica.

Temos sérios problemas ligados à qualidade de vida. A população leva quase duas horas de deslocamento entre o trabalho e a residência. Quando você gasta isso, está jogando fora oito horas que seriam disponíveis para cuidados pessoais, sociais e da família. Ao mesmo tempo, em quanto cresceu a produção automobilística? Foi espetacular o crescimento. Mas em quanto cresceu o tempo de deslocamento das pessoas? Eu ousaria dizer que, em qualquer região metropolitana, um quinto da existência é gasto nisso. É a desapropriação da qualidade de vida.

Da mesma forma, o Brasil virou celeiro do mundo. Somos o maior exportador de soja, café, açúcar, milho. Porém, está eliminada a fome do Brasil?

O senhor quer dizer que a política industrial precisa dar conta desses contrassensos?

O que quero dizer é que não há debate sobre o processo brasileiro. Onde está o projeto de nação? Aliás, não se usa mais essa palavra. A crise de identidade é tão grande que, após o debate eleitoral, se chegou a falar em separação do País. Se eu for um empresário, vou ampliar minhas instalações? É natural que a confiança empresarial esteja caindo, pois parte da mesma dúvida: para onde vamos? O que queremos para nossos filhos e netos? São perguntas que não fazemos. Apesar de vermos um debate político intenso, não avançamos nessas questões. A pergunta é com que país sonhamos e que caminhos seguiremos. Não penso em nada sem a industrialização.

O que impede essa reflexão no Brasil?

O Brasil entrou em um processo em que não discutimos na profundidade necessária. Acabamos com o governo militar, mas não discutimos porque o Brasil foi autoritário. Avançamos e fizemos uma Constituição, para depois criarmos mais de 70 emendas. Temos um regime que não é parlamentar nem presidencialista.

“EM 1980, A INDUSTRIALIZAÇÃO FOI SENDO DEMONIZADA, COMO UM MOVIMENTO INCAPAZ DE DAR AO BRASIL CONDIÇÕES RAZOÁVEIS DE VIDA. ISSO DESENVOLVEU OUTRO DISCURSO: O BRASIL SÓ PODERIA CHEGAR A SEU FUTURO PELO PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO. EXPORTAR ERA A SOLUÇÃO. A PALAVRA INDÚSTRIA FOI PERDENDO ESPAÇO ATÉ NA MÍDIA”

Aperfeiçoamos a democracia, mas não discutimos a idea do Brasil. A corrupção é vista como mal irreparável ou falha no sistema democrático. E, com isso, vem a tendência pequena, mas visível, de um pedido da volta dos militares. Essa leitura traz a ideia de que não temos condições de ter um projeto para mudar de rumo.

O brasileiro construiu sua identidade contando qualidades: o brasileiro não tem preconceito – agora é racista; o brasileiro é amável – agora é violento; o brasileiro é cordial – agora não sabe conviver. Estamos desconstruindo nossa imagem. E o que vem no lugar? O povo brasileiro passa por um processo complexo e precisa refletir para onde quer ir.

O governo nacionalista de Getúlio Vargas deixa lições para hoje?

Acredito que sim. As ideias industrializantes para o País surgiram daí. Digo que o governo Vargas foi de 1930 a 1980. Ele permaneceu como projeto por 50 anos, um período de grande desenvolvimento econômico e social.

Por que os resultados alcançados pelo Brasil ainda são tão distantes dos demais países do BRICS?

China, Índia e Rússia buscam manter posição na Eurásia e têm projetos nacionais claramente definidos. A Índia está isolada, mas existe um imenso esforço para construir uma identidade nacional, tanto que é enorme a indústria cinematográfica. Além disso, a Índia tem tido posição mais defensiva das próprias tecnologias.

A China quer criar uma esfera de prosperidade na Ásia. A Rússia quer servir de ponte entre a Europa e a Ásia. O projeto de infraestrutura mais importante do mundo é a modernização da ferrovia Transiberiana, que consagra a relação euroasiana. A frente de expansão atual é para a Europa, pois não se expande mais para os EUA. Quem se propõe a isso é a Rússia.

O Brasil, por sua vez, navega no eixo Atlântico Sul. O pré- -sal brasileiro junto com o petróleo na África forma a maior reserva do mundo. Mas fazemos pouca articulação com a África. Além disso, tenho dúvida se conseguimos acertar a relação com Argentina e, com a América andina, menos ainda.

Como vê o surgimento da China no cenário internacional?

Ela está se desdobrando, combinando características das derrotas sofridas no século IXX da Inglaterra e XX do Japão e EUA. A China aprendeu com derrotas. Copia a visão da Inglaterra de usar a periferia do mundo para pegar matérias-primas. O que faz com a África… Soube que empresas chinesas não contratam mão de obra nem para lavar roupa. Trazem empresas de lá. A atitude chinesa reproduz padrões históricos ingleses. Outra estratégia é manter a relação firme com os EUA e pegar novos espaços para eles. Os chineses estão apoiando o projeto da Transiberiana. E ao mesmo tempo propõem articular uma ferrovia de Buenos Aires a Acapulco, onde pegam recursos naturais da Argentina e do Chile. No Brasil, compram imensas terras para soja. É estranho como o Brasil deixa isso acontecer.

Qual deveria ser o papel geopolítico do Brasil nas Américas?

O Brasil deveria começar a ajudar os pequenos países da América do Sul. Não podemos fazer política agressiva contra Paraguai, Uruguai, Bolívia. Devemos encontrar ações de cooperação para reduzir assimetrias. Os irmãos sul-americanos nos veem como gigante. Devemos ser um gigante bondoso.

“A CHINA MOSTRA QUE A ECONOMIA DE MERCADO DEVE SE SUBMETER A UMA ORIENTAÇÃO DE LONGO PRAZO EXECUTADA PELO ESTADO”

Somos neutros?

O que você acha dos bolivianos com trabalho escravo, sem documento? E os haitianos? Em termos relativos, o Brasil está melhor. Mas ainda somos olhados com enorme suspeita de que o Brasil é um império e se comporta de forma imperialista.

A China poderia ser um modelo de desenvolvimento para os formuladores de políticas públicas no Brasil?

O que ela mostra é que a economia de mercado deve se submeter a uma orientação de longo prazo executada pelo Estado. A economia se desenvolve a partir de um grande guarda-chuva que é o projeto do Estado chinês, parecido com o que fazia Vargas. Porém, a história chinesa é diferente da brasileira.

Carlos Lessa
Carlos Lessa
Carlos Lessa, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), vivenciou distintos momentos do País enquanto economista, professor, intelectual e cidadão brasileiro. É dessas diferentes perspectivas que ele conversa com a FACTO sobre o que falta para o Brasil ter um projeto de Estado que atravesse governos e pavimente o caminho para o desenvolvimento de longo prazo. Para ele, o Brasil precisa, antes de tudo, discutir o que quer para o futuro e ultrapassar um complexo momento de desconstrução da identidade nacional.
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