REVISTA FACTO
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Out-Dez 2013 • ANO VII • ISSN 2623-1177
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//Artigo

BIOFÁRMACOS UM HORIZONTE DE OPORTUNIDADES

Os progressos da biotecnologia vêm alargando a fatia do mercado farmacêutico destinada aos biofármacos. Embora 80% dos medicamentos provenham ainda de síntese química, tratamentos para doenças complexas como as autoimunes e o câncer têm demonstrado o poder terapêutico desses novos produtos. A política brasileira de estímulo à produção local, através de Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDPs), tem atraído novos players para este e outros segmentos igualmente inovadores, embora ainda persistam gargalos, como a escassa infraestrutura nacional para produção em escala piloto e para as indispensáveis etapas iniciais dos testes clínicos. O sistema regulatório, por sua vez, que nos últimos anos vinha sendo apontado como um obstáculo à inovação nacional em fármacos e medicamentos, está avançando gradativamente a partir de consultas públicas e discussões entre a Anvisa e a indústria. As perspectivas são animadoras. Nesta reportagem, executivos, empresários e especialistas discutem os rumos da pesquisa, inovação e da produção de biofármacos no País.

A BIOTECNOLOGIA NA AGENDA DA INDÚSTRIA

A Biolab Sanus Farmacêutica demonstra otimismo diante da evolução do campo biofarmacêutico no Brasil, mas com reservas. Segundo seu presidente Dante Alario e o assessor científico Marcio Falci, “estamos chegando um pouco atrasados no contexto geral que envolve a biotecnologia relacionada à área de saúde humana. É recente o interesse governamental em desenvolver uma indústria farmacêutica forte em nosso País. Esse interesse tem permitido o crescimento de algumas importantes indústrias, possibilitando que elas dêem passos mais arrojados no sentido de passarem a dominar a produção futura de biotecnológicos. Isto significa que todos os atores – universidade, sistema de escolas e faculdades de tecnologia, indústria e governo – devem coordenar atividades relativas à infraestrutura, recursos humanos, suporte financeiro, compartilhamento de risco, remoção das travas burocráticas e segurança legal e normativa, no sentido de abreviar nossa capacitação no campo biotecnológico”.

Alario e Falci afirmam que será preciso fazer um enorme esforço nos próximos 10 a 15 anos para que o Brasil recupere o atraso e esteja em condições de desenvolver moléculas próprias de produtos biotecnológicos. Mas é imperativo enfrentar esta tarefa, “caso contrário, seremos eternos dependentes da tecnologia externa”.

A Biolab Sanus não tem dúvida de que o papel das Instituições Científicas e Tecnológicas – as chamadas ICTs – será relevante para o desenvolvimento da biotecnologia brasileira. Mas tão importante quanto isto, argumentam Alario e Falci,é termos a contrapartida da indústria através de seus próprios centros de pesquisa e desenvolvimento. “Trata-se inicialmente de adquirirmos capacitação. Em seguida, nossos centros de excelência irão realizar pesquisas visando à criação de novas tecnologias, novos conceitos, novas descobertas e, da parte da indústria, novos produtos. Creio que temos para os próximos dez anos uma árdua missão a enfrentar”.

A vice-presidente executiva do Grupo FarmaBrasil, Adriana Diaferia também, antes de expressar seu otimismo frente às oportunidades criadas pela biotecnologia: “os medicamentos biotecnológicos demonstram os resultados do avanço da medicina, superando desafios científicos, permitindo o desenvolvimento industrial em novas rotas tecnológicas e estimulando o dinamismo do mercado”.

No Brasil, explica Diaferia, os chamados produtos biotecnológicos de primeira geração (insulina e hormônios de crescimento, entre outros) estão em fase de desenvolvimento e registro por empresas nacionais e por Bio-Manguinhos. “Os de segunda geração, especialmente os anticorpos monoclonais, representam o futuro da indústria farmacêutica no mundo. As primeiras patentes dos biotecnológicos de segunda geração já expiraram e outras expirarão até 2020, o que vem estimulando uma corrida mundial para desenvolvimento, registro e produção dos chamados ‘biológicos não novos’, com base em regulamentações específicas para esses produtos. Essas regulamentações vêm sendo estabelecidas desde 2005 (inicialmente pela agência regulatória da União Europeia – EMA) e ainda estão em construção e revisão nos principais mercados regulados (EUA e União Europeia) e em mercados emergentes (Coreia do Sul, Índia, China e Israel), dada a complexidade técnica e a relevância econômica e financeira desse segmento”.


“NO SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO DE HOJE, AS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE ALTA DENSIDADE TECNOLÓGICA SE TORNARAM ELABORADORAS E GUARDIÃS DO PROJETO DE DESENVOLVIMENTO COM SOBERANIA, TRANSCENDENDO OS GOVERNOS”
EDUARDO COSTA


A base legal para registro e produção dos biotecnológicos no Brasil vem se consolidando, de forma alinhada com as normas internacionais, desde 2010. Atentas a esse processo, as empresas brasileiras associadas ao Grupo FarmaBrasil e outras tomaram a decisão de explorar as oportunidades oferecidas pelos biológicos não novos, ao mesmo tempo investindo na sua capacitação tecnológica tendo em vista a produção de bio betters (produtos de inovações incrementais), sem perder de vista a possibilidade de desenvolverem também inovações radicais.


“NO BRASIL, A VERTICALIZAÇÃO DA CADEIA DE MEDICAMENTOS NÃO É UM PROBLEMA CIENTÍFICO OU TECNOLÓGICO. É UM PROBLEMA EXCLUSIVAMENTE ECONÔMICO, E MAIS ESPECIFICAMENTE DE CUSTOS, O QUE IMPOSSIBILITA A COMPETITIVIDADE COM OS PRODUTOS ASIÁTICOS, PRINCIPALMENTE DA CHINA”
NICOLAU LAGES


Na opinião da executiva do Grupo FarmaBrasil, o poder público tem se mostrado sensível às dificuldades enfrentadas pelas empresas que investem nessa nova frente tecnológica. “É notório o grande desafio que as indústrias nacionais estão enfrentando para o desenvolvimento de medicamentos por meio de novas rotas tecnológicas, como a biotecnologia. No entanto, o governo federal tem empreendido esforços para contribuir com a superação dessas deficiências, permitir o fortalecimento da indústria nacional e, ao mesmo tempo, promover uma ampliação das políticas de acesso a medicamentos e ampliação do atendimento pelo SUS. O Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (Gecis), instância do Ministério da Saúde que se insere no âmbito do Plano Brasil Maior na condição de Comitê Executivo para a área da saúde, vem adotando ao longo dos últimos anos algumas importantes medidas nesse sentido, o que tem proporcionado o crescimento da produção de medicamentos e das atividades de P&D no País”.

As PDPs são um exemplo claro de convergência de ações bemsucedidas que têm trazido resultados positivos para os laboratórios públicos, para a sociedade e para a indústria farmacêutica instalada no País, segundo Diaferia. “Além de impulsionar a produção e o desenvolvimento dos laboratórios públicos e privados, esse modelo permitiu ao Ministério da Saúde economizar R$ 2 bilhões desde 2011 na oferta de medicamentos e produtos oferecidos gratuitamente pelo SUS. As PDPs têm reduzido a vulnerabilidade da política social brasileira e fortalecido o Complexo Industrial e de Inovação em Saúde, associando o aprofundamento dos objetivos do SUS com a transformação necessária da estrutura produtiva e de inovação do País, de forma a torná-la compatível com o novo padrão de consumo em saúde e com novos padrões tecnológicos”.

A Recepta Biopharma, empresa criada em 2006 com o propósito de desenvolver biofármacos para o tratamento do câncer, embora se mostre igualmente estimulada pela política governamental para o segmento, alerta para os custos decorrentes de um gargalo que, na realidade, afeta toda indústria farmoquímica inovadora instalada no País: a insuficiência da infraestrutura de produção em escala piloto. Segundo José Fernando Perez, presidente da empresa, “o projeto da Recepta não seria viável sem o grau de incentivo que nós recebemos. Conseguimos apoio de projetos de subvenção econômica, tivemos empréstimos subsidiados da Finep, apoio da Fapesp em dois projetos (Pipe e Pite) e o BNDES investiu como sócio, recentemente, por reconhecer a importância estratégica do nosso projeto”.

O problema da produção em escala piloto diz respeito a uma etapa crucial do desenvolvimento do fármaco. Significa produzir em quantidade suficiente para a realização da prova de conceito, que é uma etapa anterior à da produção industrial para o mercado. “A produção em escala piloto, que permite fazer os testes pré-clínicos e clínicos de fases 1 e 2, é a fase inicial da inovação”, esclarece Perez. “É a partir dela que a indústria tem interesse em investir. No mundo inteiro, a indústria investe cada vez menos em produtos que estejam em estágios muito preliminares de pesquisa”.

Países desenvolvidos e aqueles que ainda estão buscando uma afirmação em tecnologia, como Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, têm algumas infraestruturas nacionais que servem de apoio ao processo de inovação e que são compartilhadas, assinala o presidente da Recepta. No Brasil, se a indústria puder dispor dessa infraestrutura ela terá grande utilidade para capacitar pessoal técnico. “Veja, por exemplo, o estímulo que atualmente o governo está canalizando para a produção de biossimilares. Vai faltar gente competente para trabalhar nisso. Então, é preciso ter locais onde se possa treinar pessoal, mas com a mão na massa, e não um treinamento meramente teórico. É preciso, numa visão de médio e longo prazo sobre esse processo, criar infraestruturas que possam fazer a ponte sobre a lacuna hoje existente, para criar uma oferta de produtos que possa depois ser objeto de inovação e investimento”.

Na avaliação de Perez, a existência dessa lacuna está diretamente relacionada com as dificuldades de cooperação entre universidades e empresas no Brasil. “Temos uma competência acadêmica muito grande, mas esse potencial se esgota dentro da própria academia. Não há canais de saída. A pesquisa acadêmica não consegue se comunicar e nem oferecer oportunidades interessantes para o investimento da indústria farmacêutica”.

E a biotecnologia, sublinha o presidente da Recepta, é uma área crítica para a sustentabilidade das políticas de saúde pública, não só no Brasil. “O tratamento de doenças autoimunes e de câncer demanda drogas caríssimas. Por exemplo, um anticorpo monoclonal da Bristol-Myers que está entrando agora no mercado brasileiro, chamado Yervoy, cujo nome técnico é Ipilimumab, é vendido nos Estados Unidos por US$ 26 mil cada ampola. E o ciclo inicial de tratamento em diversos níveis com esse anticorpo é de 26 ampolas. Importar esse tipo de medicamento vai sangrar o sistema de saúde e a balança comercial. Por isso, é importante para o País desenvolver não só biossimilares, como também drogas novas”.


Seguindo sua linha de raciocínio, Perez acredita que a infraestrutura de produção em escala piloto pode ser a chave para a almejada integração universidade-empresa no Brasil. “Essa integração é um processo. Penso que estamos vivendo um bom momento para criar espaços de parceria integrando pequenas empresas e o ambiente acadêmico com o objetivo de gerar uma produção em escala piloto desses biofármacos. Esses espaços permitirão que a pesquisa avance e capacite pessoas, ao mesmo tempo em que se resolvem gargalos da cadeia de inovação”.

Enquanto persiste esse gargalo de infraestrutura, a Recepta tem optado por uma atitude pragmática: “o que é possível fazer no Brasil nós fazemos, e o que não é possível contratamos fora. Por exemplo, conseguimos fazer no Brasil a linhagem celular, mas no momento de produzir em escala piloto para os testes de fases 1 e 2 tivemos que mandar o material para a Holanda, porque não temos ainda no Brasil nenhum laboratório que consiga produzir com a qualidade necessária para uso em humanos. Há também estudos de toxicidade e de segurança que não podem ser feitos aqui. Antes de realizar testes clínicos em humanos, é preciso verificar em macacos se o produto não é tóxico e esse tipo de teste não se faz no Brasil”. Mas recorrer a prestadores de serviço no exterior tem um custo enorme, lamenta Perez. Sobretudo com tributação de importação, mesmo que o produto não se destine à comercialização e sim à pesquisa. “É possível conseguir isenções, mas à custa de processos extremamente trabalhosos, em que se perde um tempo enorme”.

Uma infraestrutura local de produção de fármacos em escala piloto teria clientela garantida entre empresas inovadoras, a começar pela Recepta. A empresa está em fase inicial de desenvolvimento de três anticorpos monomoduladores. “Serão moléculas novas, patenteadas. Não serão biossimilares, mas terão a mesma funcionalidade de outras moléculas disponíveis no mercado. Por serem diferentes, não precisamos esperar pelo término de patentes. É uma alternativa fascinante não tentar reinventar a roda e nem precisar aguardar expiração de patente para obter um produto com a mesma funcionalidade”.

Na opinião do presidente da Recepta, a demanda atual já justifica tentar convencer agências como BNDES e Finep a apoiar projetos que permitam eliminar essa falha na cadeia produtiva de fármacos e medicamentos. “Por exemplo, com uma infraestrutura adequada podemos pensar em pesquisadores na universidade desenvolvendo o anticorpo e fazendo os testes com animais em laboratório. Se os resultados forem bons, as etapas seguintes são a linhagem celular e a produção em escala piloto”.


FARMANGUINHOS INVESTE EM ESCALA PILOTO

A lacuna apontada por José Fernando Perez está longe de ser um problema específico da indústria de medicamentos biotecnológicos. Ela é uma preocupação generalizada entre as farmoquímicas inovadoras instaladas no País. Segundo o presidente da Nortec Química, Nicolau Lages, cerca de 80% dos medicamentos produzidos no mundo utilizam Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) fabricados por síntese química. “A viabilidade econômica dos processos biotecnológicos frente ao processo de síntese, salvo algumas exceções, só ocorre para moléculas muito complexas, com centenas de milhares de átomos, o que justifica os altos preços dos medicamentos fabricados com essas moléculas no mercado mundial”. Nessa mesma linha de raciocínio, o presidente da Laborvida, Lelio Maçaira, prevê que “medicamentos de origem de síntese química continuarão sendo utilizados para a maioria das enfermidades”.

Tal prognóstico é compartilhado por Jorge Costa, assessor técnico da vice-presidência de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz. “Ainda que os produtos de base biotecnológica tenham um espaço garantido, hoje e no futuro, não deverá ocorrer uma substituição de 100% dos medicamentos de base química, para os quais sempre haverá espaço. O desenvolvimento dessa área é crescente e nela se pode seguir a mesma estratégia dos biofármacos, de buscar estruturas com alta seletividade de atuação. Isto é possível”.

Por outro lado, em sua opinião, o cenário é mais dinâmico do que se poderia supor a princípio. “Penso que o Brasil não pode ficar eternamente dependendo da transferência de tecnologia de biofármacos, principalmente em virtude da clara tendência de que cada vez mais produtos de base biotecnológica sejam integrados a nossa terapêutica. Isto porque, em farmacologia e na medicina, procuram-se cada vez mais medicamentos que atuem em alvos específicos. Sabemos que os medicamentos de base sintética, mesmo sendo ainda maioria, são pouco específicos e por isso provocam efeitos colaterais indesejáveis. Por outro lado, os produtos de base biotecnológica apresentam uma especificidade maior, prejudicando bem menos o metabolismo humano, por atuarem em alvos específicos. Há uma tendência crescente de incorporação desses medicamentos de base biotecnológica pelo SUS, o que pode acarretar um problema bastante grave de sustentabilidade, porque são produtos de altíssimo valor agregado”.


“HÁ UMA TENDÊNCIA CRESCENTE À INCORPORAÇÃO DE MEDICAMENTOS DE BASE BIOTECNOLÓGICA PELO SUS, O QUE PODE ACARRETAR UM PROBLEMA BASTANTE GRAVE DE SUSTENTABILIDADE, PORQUE SÃO PRODUTOS DE ALTÍSSIMO VALOR AGREGADO”
JORGE COSTA


Ao menos no que se refere a medicamentos prioritários para o Sistema Público de Saúde, a lacuna que fragiliza a cadeia produtiva poderá ser eliminada em breve. O Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fiocruz – Farmanguinhos – apresentou ao Ministério da Saúde o projeto de implantação do Centro Nacional de Referência em Síntese de Fármacos, que terá como objetivo viabilizar o scale up de fármacos desenvolvidos no País. O projeto básico e executivo desse empreendimento absorverá, em 2014, investimentos no valor de R$ 20 milhões. Segundo o diretor de Farmanguinhos, Hayne Felipe, o local para a construção do Centro dependerá do orçamento final aprovado, e uma das possibilidades em estudo é o uso de um terreno da Fiocruz em Santa Cruz (RJ).

O projeto contempla três atividades, explica Felipe. A primeira delas é o aumento de escala para a obtenção de IFAs, aproveitando projetos de pesquisa com forte potencial, de maneira a fomentar os ensaios pré-clínicos. A segunda atividade é o escalonamento industrial de princípios ativos para doenças negligenciadas, que têm baixo valor agregado mas alta importância estratégica para a saúde pública. A terceira linha de atuação será a capacitação de pessoal, um dos grandes gargalos da cadeia de inovação, especialmente na área da química fina. “A ideia é que os profissionais aprendam fazendo. Nosso primeiro desafio será montar a equipe, pois há poucos profissionais com as competências necessárias no mercado. Já estamos de olho, em busca dessas pessoas”, afirma Felipe.

A proposta do Centro não é ser mais um competidor no mercado, e sim uma plataforma tecnológica para a Fiocruz e as indústrias instaladas no País, explica o diretor de Farmanguinhos. Isto coincide com as expectativas da indústria. Para Lelio Maçaira, a criação do Centro terá sentido “se for para atender ao objetivo de servir a empresas da cadeia farmoquímica que tenham compromissos de parcerias no setor”. Em sua opinião, também se deve considerar nesse projeto a possibilidade da verticalização de etapas de síntese de intermediários estratégicos, de forma a garantir a independência da produção nacional.


“TEMOS UMA COMPETÊNCIA ACADÊMICA MUITO GRANDE, MAS ESSE POTENCIAL SE ESGOTA DENTRO DA PRÓPRIA ACADEMIA. NÃO HÁ CANAIS DE SAÍDA. A PESQUISA ACADÊMICA NÃO CONSEGUE SE COMUNICAR NEM OFERECER OPORTUNIDADES INTERESSANTES PARA O INVESTIMENTO DA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA”
JOSÉ FERNANDO PEREZ


O projeto do Centro está em sintonia com o papel que a Fiocruz se atribui há pelo menos três décadas, de contribuir para a maior autonomia da indústria fármaco-farmacêutica nacional. “Tenho acompanhado as ações da Fiocruz na área de saúde pública desde 1981, quando Farmanguinhos iniciou o projeto pioneiro de síntese química em laboratório de quatro IFAs da lista de medicamentos essenciais do sistema público de saúde”, conta Nicolau Lages. “Na época, havia uma dificuldade com o suprimento local desses medicamentos e consequentemente uma preocupação estratégica do Ministério da Saúde quanto a sua disponibilização no mercado brasileiro. Depois desses quatros IFAs, vieram outros, sempre tendo como critério de seleção a fabricação local dos IFAs e dos medicamentos para doenças negligenciadas e a redução dos custos de importação. O objetivo da Fiocruz era desenvolver em laboratório os processos de fabricação dos IFAs em Farmanguinhos e repassá-los a uma empresa para produção local”.

A Nortec nasceu dessa parceria com a Fiocruz, sendo hoje a maior produtora de IFAs da América do Sul e que, por ser independente, abastece o mercado brasileiro com mais de 53 IFAs, afirma, orgulhosamente, Nicolau Lages. “Acredito que o Centro de Referência que está sendo construído em Farmanguinhos é mais uma importante contribuição da Fiocruz para a saúde do Brasil”. Na avaliação do presidente da Nortec, esse empreendimento permitirá a continuidade do projeto de desenvolvimento de processos de fabricação de IFAs, “desta vez repassando as tecnologias dos processos já na escala piloto para reduzir os riscos de insucessos dos parceiros”. Frente à escassez de unidades pilotos para sínteses no Brasil, ele acredita que Farmanguinhos deverá contribuir com a redução desta deficiência, “além de produzir alguns poucos fármacos de alto valor agregado e pequenas demandas para o Ministério da Saúde”.

Lages não teme que esse novo empreendimento de Farmanguinhos possa representar uma ameaça para os laboratórios privados. “Competir com o setor privado não está no código genético da Fiocruz, portanto tenho a convicção de que ela nunca fará isso. Por outro lado, contribuir através de parcerias com o setor privado para o bem da saúde pública, acredito que isto ela continuará fazendo, inclusive por instinto”.

Ao contrário de Lelio Maçaira, Nicolau Lages entende que a verticalização da cadeia produtiva de IFAs não faz parte das melhores competências de Farmanguinhos. “Ademais, no Brasil essa verticalização não é um problema científico ou tecnológico. É um problema exclusivamente econômico, e mais especificamente de custos, que impossibilita a competitividade com os produtos asiáticos, principalmente da China”.

A questão da verticalização no âmbito das PDPs é esclarecida em detalhes por Jorge Costa. “Vamos considerar o exemplo do Efavirenz. Farmanguinhos desenvolveu o medicamento e se responsabiliza pela etapa final de produção para o SUS, mas adquire o IFA das farmoquímicas nacionais. A política de PDPs adotada desde 2009 pelo Ministério da Saúde contempla a obrigatoriedade da produção verticalizada em território nacional, tanto do IFA de base sintética quanto do medicamento. Funciona assim: faz-se, em paralelo, a internalização da tecnologia de produção do medicamento e da tecnologia de produção do IFA. Em seguida, a fabricação do IFA é negociada com uma indústria farmoquímica local, que irá fornecer ao laboratório oficial para ele produzir o medicamento e distribuir ao SUS”.

Na avaliação de Jorge Costa, a manutenção do modelo das PDPs é que poderá garantir, no longo prazo, o acesso da população aos biofármacos. “Com certeza o valor pago pelos medicamentos biológicos será reduzido nos próximos anos. Quando um laboratório público formaliza uma PDP com um laboratório privado, o preço inicial já deve ser menor que o preço de referência adotado pelo Ministério da Saúde. E se estabelece também que, ao longo de cinco anos, haverá uma queda linear desse preço”.


O IMPERATIVO DA SOBERANIA

O médico sanitarista Eduardo Costa, membro titular do Conselho Nacional de Saúde (CNS), chama atenção para uma premissa que deve nortear todas as políticas públicas de apoio à inovação em fármacos e medicamentos: o compromisso com a saúde da população. “Em se tratando de saúde humana, o Brasil apresenta um quadro bastante desafiador. Temos uma situação sanitária ainda precária, comparada à de outros países, mesmo latino-americanos. Por isso, afirmamos que não são satisfatórios os horizontes da saúde só com novas tecnologias, sem desenvolvimento econômico e social do País”.

Costa é profundamente otimista em relação à capacidade do País de mobilizar seus recursos-naturais, humanos, financeiros – em prol de um desenvolvimento não apenas tecnológico como também socioeconômico soberano e justo. “O Brasil é um país privilegiado do ponto de vista da biodiversidade, o que representa um manancial de oportunidades para o desenvolvimento de produtos e processos inovadores. Além disso, tem tradição em pesquisa e desenvolvimento biotecnológico ao longo de sua história. Fomos inovadores em muitos produtos, especialmente até a década de 1960. A vacina contra a febre amarela da década de 1930 é exemplar. Desenvolvemos também uma vacina oral contra a tuberculose, demonstrada de alta eficácia e efetividade contra a meningite pelo Mycobacterium tuberculosae, que, no entanto, foi substituída por uma vacina injetável desenvolvida no exterior. Outro elemento crucial para a efetivação de nossas potencialidades em desenvolvimento tecnológico é que temos pesquisadores bem formados em inúmeras instituições nacionais. Bolsas de estudo e financiamento a pesquisas são providos por instituições nacionais e regionais de peso, inclusive com programas de apoio à inovação. E temos o BNDES, um banco poderoso voltado para o desenvolvimento industrial”.

O conselheiro do CNS não tem dúvida de que o Ministério da Saúde, tradicionalmente, tem contribuído para incentivar o desenvolvimento de produtos biotecnológicos necessários aos serviços de saúde. Um passo crucial, em sua opinião, foi o financiamento a fundo perdido, orçamentário, dos laboratórios nacionais, em particular os estatais e paraestatais, há cerca de três décadas. “Ainda que se adotassem preços de referência, não havia competição entre públicos e privados no campo das vacinas. A pesquisa e a produção se distanciaram naquele período, o que inibiu a capacidade de inovação. Nossos produtos foram ficando defasados dos desenvolvidos alhures. A solução inicial para esse problema foi o estabelecimento de contratos para desenvolvimento local de novos produtos, originários, via de regra, dos grandes laboratórios multinacionais, oferecendo-se o mercado público indireto, durante alguns anos, como moeda de troca. Esse movimento propiciou a modernização tecnológica das instituições nacionais e a qualificação de pessoal no domínio industrial das técnicas envolvidas”.

Mas o passo decisivo para a inovação, afirma Eduardo Costa, estava por ser dado e “foi propiciado, já na primeira década de 2000, pelo desenvolvimento out of the track, não em vacinas. Ou seja, a utilização de PDPs para produtos biotecnológicos seguiu o esforço para se desenvolver uma política na área de medicamentos de alto custo. A necessidade era óbvia: havíamos quintuplicado os gastos na importação de medicamentos em pouco mais de uma década. E o ambiente estava impregnado de políticas da década anterior que minavam os esforços nacionais: a extinção da CEME, a adoção das patentes com pipeline, liberalização das importações, inclusive com retirada de impostos de medicamentos de alto custo, além da total ausência de uma política industrial para o setor”.

Essa recente virada na política industrial para a saúde encontrou no programa de combate à AIDS sua janela de oportunidade, prossegue Eduardo Costa. “A ampla mobilização internacional de ativistas sociais em torno desse programa, no qual o Brasil era uma referência mundial, sensibilizou órgãos internacionais. Mas havia um obstáculo: depois do AZT, desenvolvido localmente por uma empresa brasileira, no setor público fazíamos apenas a formulação e importávamos a matéria-prima, embora algumas empresas nacionais estivessem capacitadas a produzi-la, ou com poucos estímulos pudessem vir a fazê-lo. O episódio da licença compulsória do Efavirenz neutralizou a resistência das empresas estrangeiras e o Ministério da Saúde pode iniciar o programa de desenvolvimento produtivo em arranjo inovador com o setor privado nacional e os laboratórios públicos”.

Na mesma linha de argumentação de Jorge Costa, o conselheiro do CNS, Eduardo Costa, entende que o modelo das PDPs deve ser ampliado e aplicado ao desenvolvimento de produtos biotecnológicos no País. “A decisão inicial de promover arranjos produto a produto, uma opção lógica do Ministério da Saúde para viabilizar, em seguida, uma etapa de arranjos por processos produtivos (extrativos, fermentativos, engenharia genética, síntese etc), precisaria de uma estratégia de governo, compartilhada entre MDIC, MCTI, MS e seus órgãos. A velocidade do processo de soberania nesse campo dependerá de sua condução política. A condução restrita ao Ministério da Saúde, ainda que com a aquiescência global dos diferentes ministérios, reduz possibilidades de saltos em termos de integração latino-americana e fortalecimento regional. Houve início de entendimentos para a criação de uma binacional Brasil-Argentina, que poderia ser desenvolvida justamente com o foco biotecnológico”.

Mesmo considerando a complexidade do problema, Eduardo Costa se mantém confiante e acredita que o princípio da soberania prevalecerá sobre interesses puramente comerciais. “Estou convencido hoje de que no sistema político brasileiro as instituições públicas de alta densidade tecnológica se tornaram elaboradoras e guardiãs do projeto de desenvolvimento com soberania, transcendendo os governos. Isto é, detêm a possibilidade de um projeto nacional estratégico, que inexiste na administração direta e nos governos, em vista das injunções econômicas a que precisa responder o Poder Executivo, além dos legítimos, mas dispersantes, projetos eleitorais. É preciso que elas fortaleçam a consciência disto e suas comunidades avancem do campo corporativo para a construção do Brasil do futuro”.

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