REVISTA FACTO
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Jul-Ago 2009 • ANO III • ISSN 2623-1177
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A crise financeira está sendo superada?
//Entrevista Mauro Arruda

A crise financeira está sendo superada?

Políticas anticíclicas adotadas até aqui pelo governo priorizam o mercado interno, o acesso das empresas ao crédito, o consumo das famílias e os gastos governamentais, refletindo, talvez, a resistência do Banco Central para atuar no câmbio e reforçar as exportações. Já estamos perdendo mercado para a China até na América Latina. Será possível depender apenas do mercado interno para superar a crise?
As políticas anticíclicas têm produzido resultados. Não fossem elas o país estaria vivendo uma situação dramática de aumento generalizado de falência de empresas, de desemprego, de perda de renda das famílias e de perdas acentuadas de arrecadação dos Governos. 
No Brasil, essas políticas conseguiram resgatar, numa velocidade surpreendente, a confiança dos agentes econômicos, sem o que não seria possível a recuperação da economia neste segundo semestre; nem a certeza de que o país terá um crescimento robusto no ano que vem. Na realidade, fecharemos 2009 com uma taxa próxima de zero, para mais ou para menos, quando a previsão do mercado, no início do ano, era que o país teria taxas entre – 2% e – 2,5%. Em contrapartida, nossa taxa de crescimento em 2010 será inferior, apenas, à da China, uma vez que não está claro que a Índia crescerá mais que 5%. Assim, os BICs, e não os BRICs, serão os únicos países de grande porte a crescer no mundo no próximo ano. A Rússia continuará em crise.
Não é sem razão que se fala que o Brasil é a bola da vez. Com isso, os investimentos estrangeiros crescerão, podendo, em 2010, bater recordes históricos.
As políticas do Governo, face à dimensão da crise internacional, tinham de privilegiar o mercado interno, embora medidas de incentivo às exportações tenham sido colocadas em prática. Infelizmente, o efeito delas será irrelevante, tendo em vista que a crise internacional é marcada pela queda da demanda nos países centrais. Com isso, a demanda por produtos brasileiros permanecerá baixa e ainda sofrerá, em muitos casos, com barreiras tarifárias e não-tarifárias.
Não bastasse a fragilidade da demanda externa, a valorização do real tirará a possibilidade de exportarmos mais. E, vale alertar que o câmbio exercerá papel central no desempenho da economia brasileira neste e no próximo ano. Com a queda da taxa de juros básica para 8,75%, que ainda é alta, o Banco Central vem fazendo – e estará fazendo muito mais – do câmbio a âncora da estabilidade de preços. Cabe frisar que, tirando as moedas de países de menor expressão econômica, como a da África do Sul, o real foi a moeda que mais se valorizou nesta crise. Enquanto isso, na China, há anos cada dólar custa, aproximadamente, 6,80 yuan. É com base nesse câmbio e numa política agressiva de luta por mercados que esse país se torna imbatível no mercado internacional. Ninguém pode concorrer com ele. E olha que, em função da crise, suas exportações caíram bastante. 
A forte valorização do real representará, novamente, um duríssimo golpe para a indústria nacional.
No mercado, há quem preveja o dólar valendo cerca de R$ 1,70, ou até menos, no final do ano. E mesmo que fique próximo de R$ 1,80, representará uma perda substancial de competitividade para a indústria brasileira. Neste cenário, a onda das importações voltará a ganhar força.
O Banco Central continuará comprando moedas estrangeiras, porque faz parte da política do Governo ter reservas elevadas. Porém, sabe-se que a compra será insuficiente para estancar a valorização do real. Ela ficará sempre aquém do volume de entrada, que é e continuará sendo crescente. Como disse, o Brasil é a bola da vez.
Sabe-se que há medidas que podem ser tomadas para diminuir a valorização do real, como a criação de determinadas barreiras em relação à entrada de capitais especulativos. Num momento de crise internacional, essas barreiras são compreensíveis. Mas não se deve esperar que isso seja feito.

Para o setor produtivo nacional, o que se pode fazer com as reservas internacionais?
Pareceu-me um atraso o país não levar a sério a discussão do fundo soberano.
Não se pode deixar de considerar o exemplo de países que constituíram fundos como este, em particular, o chinês.
Há poucos dias, o Primeiro-Ministro chinês anunciou que a China usará suas reservas para acelerar a implementação de estratégia de internacionalização de suas empresas. Trata-se de financiar os investimentos de empresas chinesas no exterior objetivando, inclusive, reduzir a dependência em relação ao dólar como moeda de reserva. O fundo soberano China Investment, fundo de investimento com US$ 200 bilhões de capital, é parte dessa estratégia. Está voltado para participações em empresas internacionais de recursos naturais. Mas, o governo chinês o considera insuficiente e diversificará suas aplicações, entre elas, reforçando o capital de empresas estatais para que invistam no exterior, comprando concorrentes.
A estratégia anunciada é uma resposta, também, à queda substancial das exportações chinesas. Comparadas com o mesmo mês do ano anterior, desde novembro do ano passado elas estão crescendo bem menos – em janeiro de 2009, elas foram menores em mais de 50% em relação a janeiro de 2008; em maio de 2009, foram 20% menores em relação a maio de 2008.
O Brasil, observadas as devidas proporções de reservas internacionais, poderia fazer o mesmo. E até por uma razão bem objetiva, com a valorização do real não restarão muitas alternativas à indústria nacional: ou sai e compra market-share no exterior – participação em boas empresas estrangeiras, ou passará por momentos extremamente difíceis. Uma parte do Governo, como o BNDES, tem clareza sobre isso e vem dando apoio à internacionalização de empresas brasileiras. Mas, com um fundo soberano em operação, o processo poderia ganhar maior dimensão.

Gastos do Governo e cortes de impostos para setores selecionados estão se juntando à redução da atividade econômica e, consequentemente, da arrecadação, pressionando as contas públicas. Um superávit primário abaixo da meta de 2,5% do PIB não acende um sinal vermelho para o Governo? E como fica a relação dívida líquida do setor público sobre o PIB?
Com a crise e o seu recrudescimento era óbvio que haveria queda da arrecadação de impostos. Por outro lado, eram necessárias políticas anticíclicas, que requereram, entre outras medidas, cortes de impostos. Num quadro como este o superávit primário teria de vir para patamares mais baixos.
Contudo, é importante salientar que, com as vendas de automóveis em níveis próximos das vendas do ano passado, o corte de impostos na indústria automobilística teve, com certeza, pouca influência na queda da arrecadação. O mais importante é que o corte favoreceu a retomada dessa indústria, cujos efeitos multiplicadores são enormes – a indústria de autopeças, por exemplo, está se recuperando rapidamente. Ademais, pode-se creditar que parte da confiança dos agentes econômicos na recuperação da economia deve-se ao ritmo intenso das vendas dessa indústria e de anúncios de grandes investimentos por uma ou outra montadora. Não é por outra razão que, nessa crise, reconhecendo a importância do setor, governos de diferentes países o estão socorrendo ou lhe dando incentivos.
Além do automotivo e do eletroeletrônico, outros setores poderiam ter sido contemplados com cortes de impostos, mas não dá para fazer isto de forma generalizada.
Não posso esquecer que o setor de bens de capital, estratégico para o país, o mais atingido pela crise, foi recentemente contemplado com condições de financiamento que baratearão os investimentos das empresas nacionais em máquinas e equipamentos. Com a economia crescendo haverá retomada dos investimentos e o setor, apoiado por essas medidas, voltará a crescer.       
Apesar disso, não há como negar que preocupa o aumento dos gastos do Governo, com custeio e pessoal, este último tendo crescido bastante. Mas, se houver mais disciplina com esses gastos daqui para frente – creio que haverá, tamanha a reação da sociedade ao aumento desses gastos neste momento – com a retomada do crescimento os gastos do Governo deixarão de ser uma preocupação. A meta de superávit primário de 2,5% poderá ser cumprida.
Quanto à relação dívida líquida do setor público/PIB, o mercado trabalha com uma previsão, para 2009, de 42%. Em 2008, ela foi de cerca de 39%, porém, em 2007, foi de quase 44%. O melhor é o que o mercado prevê, para 2010, uma relação dívida líquida/PIB semelhante à de 2008.

Investimentos previstos para a exploração do pré-sal são da dimensão de um PAC. Como fazer para reter no Brasil uma fatia ponderável das aquisições de máquinas, navios, sondas, plataformas, etc.?
Realmente, em função das cifras gigantescas que a Petrobrás investirá para a exploração do pré-sal, pode-se pretender a criação de uma nova indústria na área de petróleo.
Para que isso aconteça, será necessária uma mudança radical na política de compras que a Petrobrás adotou nos últimos vinte anos, em que se privilegiou apenas o preço. Já imaginaram uma política dessas com o real bastante valorizado? 
Entretanto, não devemos nos contentar com uma política de simples aumento de encomendas para o parque produtivo brasileiro, seguindo a velha cartilha da substituição de importações. É indispensável ir além, pensar e agir estrategicamente.
Nesse sentido, o pré-sal deve servir como um instrumento para a recriação de uma engenharia e de uma indústria nacional na área de petróleo, que dominem tecnologias e que estejam presentes na produção de bens e de serviços de maior valor agregado. No momento, nossa indústria de máquinas e equipamentos para petróleo, por exemplo, fabrica pouquíssimos bens de maior complexidade tecnológica. E, fora algumas exceções, é formada por empresas pequenas, comparativamente ao tamanho de seus concorrentes internacionais. 
Deve-se ter claro que é muito pouco produzir navios e plataformas que são projetados no exterior. É porque sendo projetados no exterior, acabamos importando grande parte do que vai dentro, justamente equipamentos e outros bens de maior valor agregado. Do navio, por exemplo, produz-se, no Brasil, o casco e quase mais nada.
Portanto, deve-se almejar uma política mais ambiciosa, que valorize não só a produção, mas também a realização de projetos desses bens no país. Não podemos esquecer do segmento de prestação de serviços, que na área de petróleo envolve serviços sofisticados em termos técnicos. E permeando isso tudo, a criação de empresas de porte internacional.

Química – inclusive fertilizantes e medicamentos – eletrônica e bens de capital têm sido os vilões do incremento nas importações, reduzindo drasticamente o superávit comercial do país. Algum programa especial em vista para alavancar a produção interna desses setores?
As considerações que fiz em relação ao pré-sal, sobre o que poderia ser uma política de compras da Petrobrás, se aplicariam à área farmoquímica, em que as compras do Estado, via SUS, representam entre 20% e 25% do faturamento das empresas do setor farmacêutico e de seus insumos no país. Mas, felizmente, em 2008 nessa área o Ministério da Saúde deu passos afirmativos, baixando portarias que, uma vez aplicadas, poderão ser uma grande alavanca para o fortalecimento da indústria nacional. Assim, a indústria farmacêutica e a de química fina, estratégicas para o país, poderão crescer, mesmo com o real valorizado.
Ao contrário, nos demais setores mencionados, pelo fato da dinâmica de mercado ser outra – não haver, por exemplo, compras governamentais, a não ser de máquinas e equipamentos para petróleo, infraestrutura (nesta última, tenho dúvidas se haverá uma política de compras na linha falada anteriormente) e para a química fina em implantação – minhas observações sobre o câmbio me permitem afirmar que dificilmente conseguiremos impulsionar a produção de seus bens no Brasil. A tendência nesses setores, com a retomada do crescimento econômico e o real em valorização, é dos fabricantes nacionais voltarem a sofrer concorrência ferrenha dos importados. Se ficarem como estão, serão presas fáceis dos concorrentes estrangeiros.
Abro um parêntese: as políticas macroeconômicas adotadas nos últimos vinte anos fizeram nossa indústria definhar e ficar praticamente restrita à produção de commodities. O câmbio valorizado, ao transformar a relação câmbio/salário, extremamente gravosa para a indústria nacional, tirou de cena segmentos que fabricavam produtos de maior valor agregado e tornaram dificílimas as possibilidades de contarmos com segmentos de tecnologia de ponta. Em boa parte, isto também explica porque se investe tão pouco no país em inovação tecnológica, e se continuará investindo, mesmo depois de criados a partir de 2004 os bons instrumentos de incentivos ao desenvolvimento tecnológico.
Por certo, elementos da competitividade sistêmica, como uma carga tributária bem menor e uma infraestrutura melhor, poderiam ajudar na melhoria da competitividade da indústria brasileira. Mas, nada é pior que um câmbio bastante valorizado.
Face a isso num esforço para recuperar o que se perdeu e o pouco que restou de indústria com maior conteúdo tecnológico, as empresas nacionais desses setores deverão executar simultaneamente duas políticas, que devem ser vistas como complementares: uma, de participar de projetos de consolidação setorial no país; outra, de projetos de internacionalização.
Projetos de consolidação setorial estão acontecendo em vários setores, sendo que em alguns num ritmo impressionante. O mesmo deveria estar ocorrendo nos setores em foco. Neles, a aquisição ou fusão de empresas nacionais é ainda pequena. Claro, que não estou falando em compra de empresa brasileira por uma estrangeira do mesmo setor.
Com relação à internacionalização, deve-se considerar que, com a crise, os preços dos ativos no exterior estão muito baixos. Nos setores citados, com certeza há um bom número de boas empresas no exterior passando por dificuldades e que podem ser compradas por preços irrisórios. Ao comprar ativos dessas empresas, as empresas nacionais poderão mudar de perfil, incorporando tecnologia e até centros de pesquisas, e não menos importante, ganhando market share. Podem, portanto, crescer rapidamente e ficar menos dependentes do mercado interno e de políticas de valorização do real.
O Brasil, diferente da maioria dos países, conta com um instrumento como o BNDES que está financiando projetos de consolidação setorial e, como disse, de internacionalização de empresas brasileiras. Falei do fundo soberano que poderia ter um papel relevante nisso tudo, acrescentando recursos para imprimir maior velocidade à compra de ativos estrangeiros.      
Finalizando, nunca é demais dizer que a crise cria oportunidades. Ela permite que empresas mais frágeis, mas com baixo nível de endividamento, possam comprar empresas maiores, com bom market share, mas que estão bastante endividadas. Temos ótimas janelas de oportunidades para abrir, que permitiriam ao Brasil entrar forte em setores de tecnologia de ponta. Cabe alertar que o problema é o tempo, porque uma simples recuperação de alguns países desenvolvidos será suficiente para as janelas se fecharem.

* entrevista concedida em 31 de julho de 2009

Mauro Arruda
Mauro Arruda
Economista e sócio da Macrotempo Consultoria Econômica. É especialista em política industrial e tecnológica.
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