REVISTA FACTO
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Mar-Abr 2009 • ANO III • ISSN 2623-1177
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//Matérias

O fantasma do protecionismo

Em poucas semanas, após setembro de 2009, o mundo assistiu a maior queda de demanda dos últimos tempos, na esteira da crise financeira que se iniciou nos Estados Unidos e rapidamente se propagou por outros países. A diminuição do consumo atingiu primeiro os mercados de produtos de maior conteúdo tecnológico e menor essencialidade – carros, celulares, computadores etc.- alcançando com maior intensidade países como EUA, Japão, Coréia, Taiwan, China e os industrializados da Comunidade Européia. A queda nas vendas daqueles produtos não tardou a se propagar pelas cadeias de produção afetando os mercados de matérias primas e seus países exportadores. Praticamente nenhum mercado ficou imune a crise, pois a perda de poder aquisitivo generalizada afetou a demanda até mesmo de bens essenciais, como alimentos. A repentina perda de riqueza causada pela queda de valor de ativos financeiros importantes, embora fictícia, obriga a economia mundial a buscar um novo ponto de equilíbrio, um novo valor para cada um dos elos das diferentes cadeias de produção, um novo valor de troca para as mercadorias. Este novo ponto de equilíbrio, quando encontrado, pode resultar numa geografia econômica do mundo substancialmente alterada e esta perspectiva põe mais lenha na fogueira da interminável luta pelos mercados.

Como era previsível, a redução na demanda global trouxe de volta o fantasma do protecionismo, sempre combatido, mas nunca eliminado. O velho protecionismo de fechamento de fronteiras perdeu substância com o avanço do processo de globalização da economia, com a transnacionalização das cadeias de produção, mas deu lugar ao surgimento de métodos mais insidiosos e disfarçados de restrição, calcados muitas vezes na proteção a direitos de propriedade industrial e na regulação técnica de mercados. A força da crise fez ressurgir o apelo ao “buy american”, ao “cada um cuide de si” e, o que é pior, deu também alento aos processos em andamento de estabelecimento de formas de protecionismo tecnológico, cuja potencialidade foi reforçada após a adoção do acordo Trips pela Organização Mundial de Comércio – OMC.

O acordo Trips não inovou em relação ao nível de proteção conferido às invenções. Suas regras já eram praticadas pelos países mais desenvolvidos. O que Trips fez foi estender as regras dos países desenvolvidos para os ainda subdesenvolvidos com a conseqüência de que estes últimos passaram a pagar um preço mais elevado pela participação no sistema, o que dificultou o seu acesso aos bens de maior conteúdo tecnológico ainda sob proteção de patentes e, através do bloqueio de mercado, colocou um sério entrave ao seu processo interno de inovação. Mas não foi esta a única novidade em Trips. Este acordo também criou regras para cumprimento das obrigações e penalidades para a não observância das mesmas e é daí que vêm as novas pressões protecionistas.

Sob o pretexto do combate à pirataria e à contrafação, discute-se no âmbito da Organização Aduaneira Mundial – OMA, a criação de um novo acordo internacional, o Anti Counterfeiting Trade Agreement – ACTA que daria poderes daria poderes às aduanas de todos os países para impedir a circulação internacional de mercadorias suspeitas de estarem infringindo direitos de propriedade intelectual. Este acordo, que vem sendo negociado sob suspeitoso sigilo, por iniciativa dos países da OECD, ameaça colocar obstáculos ao crescimento do comércio Sul-Sul, especialmente especialmente aos produtos químicos e farmacêuticos, que vêm se expandindo na esteira do desenvolvimento industrial da China e da Índia. A retenção, em aeroportos holandeses, de uma remessa de medicamentos indianos destinada ao Brasil, feita sob a égide de uma legislação anti-pirataria adotada pela União Europeia, dá bem uma idéia das conseqüências que poderiam resultar da adoção do ACTA. A iniciativa, que está sendo negociada no âmbito do projeto Secure, pretende regulamentar o artigo 51 de Trips, mas excede bem muito, as obrigações previstas naquele acordo. Trips obriga os estados membros a tomar medidas de fronteira para coibir infrações a marcas e direitos autorais e apenas faculta aos membros tomar medidas contra supostas infrações a outros direitos de propriedade intelectual. Na discussão deste assunto há uma aparentemente intencional confusão entre produtos falsificados (piratas) e produtos que, eventualmente, poderiam estar infringindo um direito de propriedade intelectual. É de se registrar que os únicos conceitos internacionalmente aceitos são os de falsificação de marcas e infração de direitos de autor, os quais são explicitamente definidos em Trips.

Não é apenas o projeto Secure que está em andamento. Também na Organização Mundial da Saúde – OMS – há uma iniciativa que sob o pretexto de coibir a circulação mundial de produtos farmacêuticos de baixa qualidade procura envolver questões de propriedade intelectual. A atuação da OMS no combate ao comércio de medicamentos de baixa qualidade é antiga e meritória, mas uma iniciativa recente parece estar se desviando dos objetivos básicos daquela organização. Desde 2006 a OMS está apoiando e atuando como secretaria de uma nova iniciativa destinada a combater o comércio ilegal de medicamentos. Trata- se do International Medical Products Anticounterfeiting Taskforce (Impact). Esta iniciativa nasceu em uma conferência realizada em Roma, em 2006, sob os auspícios da OMS, e que tratou da questão da falsificação de medicamentos. A criação do Impact foi uma decisão de um grupo de estados membros e não da OMS em si. A participação é permitida a todos os 193 estados integrantes da Organização, mas é voluntária e não obrigatória. Falta transparência nos trabalhos do grupo, há uma confusão na distribuição dos documentos gerados que estão sendo disponibilizados por dois diferentes sítios na Net, muitas vezes conflitantes entre si. O que dá para perceber é que, também aqui, a exemplo do Secure, estão se misturando os conceitos de falsificação de marcas e infração a direitos de propriedade intelectual.

Os países da Europa Ocidental, tradicionalmente grandes produtores de produtos químicos e farmacêuticos, estão fortemente engajados na proteção de seus mercados que, agora percebem, estão seriamente ameaçados pela crescente produção que vem da Índia e principalmente da China.

Na esteira desta preocupação com a circulação de medicamentos falsificados ou de baixa qualidade, a Comissão Europeia está estudando estender a exigência de Boas Práticas de Fabricação, atualmente aplicável apenas aos medicamentos acabados, para alcançar também os princípios ativos. Pela proposta em estudo toda a cadeia de comercialização dos princípios ativos seria monitorada e intensificada a auditagem nas fábricas de origem. A Comissão Europeia suspeita que muitos princípios ativos de baixa qualidade, e que não foram fabricados levando em conta as BPF, estão entrando em mercados europeus e lá sendo utilizados para a fabricação de medicamentos destinados à exportação, especialmente para mercados da América Latina e África.

Matérias primas farmacêuticas de baixa qualidade não são novidade para o Brasil. Nós também sofremos bastante com isto, especialmente nas compras por laboratórios farmacêuticos públicos que são obrigados, por uma sistemática legal inadequada, a comprar sempre pelo menor preço, desprezando a questão da qualidade.

Igualmente perigosa tem sido a iniciativa de proibição de certos produtos químicos, especialmente defensivos agrícolas, sob o pretexto de elevada toxidez ou de riscos ao meio ambiente. Inúmeros dos produtos sob suspeita são bons produtos, usados há anos pelos agricultores que já aprenderam o seu correto manejo. Como já não tem a proteção de patentes ou direitos exclusivos de comercialização, são produzidos por inúmeras empresas os países em desenvolvimento e comercializados a preços baixos, permitindo seu uso em larga escala. A proibição de sua comercialização favoreceria o lançamento de produtos mais novos, criados pelas grandes empresas e que são mais caros porque sob proteção de direitos de exclusividade.

Todas as iniciativas tendentes a coibir a fabricação e comercialização de medicamentos de baixa qualidade, sem valor terapêutico adequado ou contendo contaminações potencialmente tóxicas devem ser louvadas e apoiadas. Da mesma forma é imperativo que as ações destinadas à conservação do meio ambiente sejam respeitadas e fortalecidas. Cuidados, entretanto, devem ser tomados para que tais iniciativas não sejam desvirtuadas e postas a serviço de um protecionismo tecnológico disfarçado.

Marcos Oliveira
Marcos Oliveira
Membro do Conselho Consultivo da ABIFINA.
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