REVISTA FACTO
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Mar-Abr 2008 • ANO II • ISSN 2623-1177
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//Artigo

Verticalização da cadeia produtiva: um imperativo estratégico

Após duas décadas de declínio, provocado pela abertura comercial indiscriminada que marcou os primeiros anos da globalização econômica no país, a indústria nacional de química fina tem hoje boas perspectivas de se reerguer. Entretanto, enfrenta ainda o obstáculo da dependência de importações de insumos estratégicos, razão pela qual o governo federal, através da Petrobras, estuda incorporar ao Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj) um pólo de produção de intermediários de síntese para a química fina. Os desafios são imensos, uma vez que será necessário mobilizar de forma articulada diversos instrumentos de incentivo à produção. Mas temos a nosso favor a prioridade conferida pela Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior à cadeia produtiva de fármacos e medicamentos, e também, agora, uma inequívoca vontade política do governo de retomar a rota do desenvolvimento industrial.

Petrobras: o parceiro ideal

Assessor especial da presidência da Petrobras e coordenador do estudo preliminar encomendado pela empresa, através da Petroquisa, para avaliar a potencialidade da produção de intermediários de síntese para a química fina no Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), Vivaldo Barbosa é um entusiasta do projeto, principalmente quanto à possibilidade de a Petrobras vir a contribuir para a viabilização da cadeia produtiva de medicamentos no País: “Nas minhas atividades parlamentares eu descobri que petroquímica tem relação com remédio. O Brasil já produz alguma coisa de fármacos, mas é pouco, e este projeto pode nos colocar em outra posição no cenário mundial.”

O estudo, iniciado em 2004 e concluído no final do ano passado, foi solicitado à Universidade Federal do Rio de Janeiro e elaborado através da Fundação José Pelúcio Ferreira, tendo o apoio de diversas indústrias de química fina instaladas no país, principalmente dos setores de fármacos e agroquímicos. Nele são identificados os principais intermediários demandados pela indústria de química fina e os produtos petroquímicos básicos utilizados na sua fabricação: etenos, benzenos, toluenos e xilenos. A partir desses produtos, o estudo sugere a montagem de uma cadeia de intermediários de síntese cujo produto final é a matéria-prima para produzir fármacos. “O Brasil, embora tenha alguma produção de fármacos e agroquímicos, basicamente não produz uma gota desses intermediários”, lamenta Vivaldo Barbosa.

O estudo concluiu pela viabilidade tecnológica, econômica e financeira de um  projeto nesta área e recomenda que se invista no aprofundamento da questão. Inicialmente, esclarece o assessor da Petrobras, chegou-se a pensar num complexo que incluísse também a produção de fármacos, mas uma avaliação mais cuidadosa sugeriu que o complexo se limitasse aos intermediários de síntese, deixando os fármacos para serem desenvolvidos pela indústria já instalada, que dessa forma poderia ampliar suas oportunidades. “A indústria de fármacos tem que ser ampliada, pois ainda é pequena para as necessidades do país, e com disponibilidade de matérias-primas aqui no Brasil é óbvio que estarão criadas as condições para ela se expandir muito.”

Vivaldo Barbosa ressalta que o Brasil oferece um leque de condições favoráveis para viabilizar o projeto: “Não há problemas de mão-de-obra nem de capacitação, nossa indústria é competente, nossas universidades produzem conhecimento de ponta e, inclusive, há capital disponível.” Trazer profissionais bem treinados da área de petroquímica para a química fina e segmentos intermediários será um passo natural. Essa visão é compartilhada pelo secretário de Tecnologia Industrial do MDIC, Francelino Grando, que acentua a vantagem competitiva representada pela qualificação de mão-de-obra: “A qualidade da mão-de-obra disponível no Brasil, formada com recursos públicos, é um patrimônio precioso e está disponível. Os indianos tiveram que mandar muita gente estudar fora durante longo tempo para atingir esse patamar.”

O assessor da Petrobras acredita que a parte mais difícil do projeto é a tecnológica, por falta de experiência do país nos segmentos de intermediários da química fina. “Teremos que fazer um grande esforço para definir a linha tecnológica, mas estou absolutamente confiante de que o projeto é viável comercialmente e resgatará para o Brasil uma posição estratégica no mercado mundial, além de sanar aspectos de dependência externa que são alarmantes”, insiste Barbosa. “Tecnologia nós podemos adquirir, e ainda criar condições para desenvolvê-la aqui, no futuro.”

Segundo Vivaldo Barbosa, o Ministério da Saúde, o MCT e o Mapa estão envolvidos visceralmente na viabilização desse empreendimento dentro do Comperj. “O BNDES certamente vai abrir linha de financiamento para isso e pode participar acionariamente do projeto, assim como a Petrobras.” Sua confiança na viabilidade econômica do projeto está lastreada também nas perspectivas de exportação. “Além da demanda interna há a América Latina, um mercado muito próximo onde  não há esta produção.

Numa avaliação mais ampla do cenário global, Barbosa considera que, no conjunto dos países em desenvolvimento, o Brasil é o que tem mais condições de adquirir um sólido controle sobre a cadeia produtiva completa da área de medicamentos. “A Índia e a China produzem os intermediários finais mas não têm o domínio da cadeia completa. A produção nesses países é muito precária no sentido de não atender às recomendações e exigências tecnológicas importantes, pois são produtores muito especializados que, embora forneçam boa parte dos produtos finais da cadeia intermediária, não têm know-how sobre certos elos que nós iremos dominar, talvez não inicialmente mas em um processo crescente. Nós podemos chegar lá.”

BNDES: a voz da prudência

Embora a participação do BNDES seja considerada estratégica para a viabilização de um pólo de intermediários de síntese no Comperj, o banco entende que o estudo preliminar patrocinado pela Petrobras ainda não fornece informações seguras para garantir a viabilidade econômica do empreendimento. Isso é particularmente delicado para o segmento farmoquímico, que é o mais carente de fortalecimento da cadeia produtiva nacional e ao mesmo tempo aquele que não tem podido contar com demanda garantida, uma vez que só muito recentemente o Ministério da Saúde começou a dar preferência aos produtores locais.

Segundo Pedro Lins Palmeira, Filho chefe do Departamento de Produtos Intermediários Químicos e Farmacêuticos do BNDES, a linha de conduta do banco é “primeiro fortalecer a ponta da produção de medicamentos para que ela possa demandar uma produção local de farmoquímicos; e que esta, por sua vez, possa demandar a produção local de intermediários químicos. Dessa forma, se estaria adensando a cadeia produtiva farmacêutica e promovendo a sua consolidação aqui no Brasil”.

Na visão de Palmeira o projeto gera duas grandes preocupações, “que não devem ser compreendidas como problemas, mas como desafios”. A primeira diz respeito ao mercado. Na concepção do banco, o projeto deveria nascer ancorado a uma demanda real, “caso contrário corre-se o risco de repetir erros do passado”. Em sua opinião, a criação de alguma estrutura econômica, regulatória e política que permita amarrar a demanda na partida do projeto seria muito bem-vinda, “para não dizer necessária ao equacionamento do financiamento futuro do projeto”.

Pedro Palmeira também considera indispensável uma fundamentação técnica mais consistente, que implicaria verificar as rotas tecnológicas para cada produto da cadeia de intermediários prevista no Comperj, as rotas de síntese alternativas, se são conhecidas, se estão disponíveis para licenciamento e quem as licencia, se existe o risco de fornecedores atuais descontinuarem a produção etc. “Este é um quebra-cabeça delicado”, pondera o executivo do BNDES.

Além disso há o problema do câmbio, que não pode ser subestimado. Palmeira insiste na necessidade de se garantirem condições para que o Comperj propicie um cenário interno mais favorável do que o externo frente aos preços de intermediários praticados no mercado internacional, o que é complicado. “Por isso há tantas incertezas com relação a esse projeto. Hoje vivemos em um ambiente onde a taxa de câmbio não é favorável à produção local. É mais favorável à importação. Há produtores de baixo custo consolidados na Índia e na China, onde não existem tantos impedimentos ambientais para a produção de farmoquímicos.”

Como fazer para produzir intermediários no Brasil com uma taxa de câmbio totalmente desfavorável e com produtores de baixo custo consolidados externamente? O BNDES ainda não tem resposta para essa questão. Segundo Palmeira, “dando certo, o projeto vai contribuir para o adensamento da cadeia produtiva farmacêutica e em última instância para a melhoria dos produtos de saúde fabricados no país e para a redução da vulnerabilidade da política nacional de saúde. É meritório, mas embute grandes desafios. E na fase atual, ainda há um caminho a percorrer até que o grupo de trabalho possa vislumbrar mecanismos possíveis de financiamento para o projeto”.

As preocupações de Palmeira refletem incertezas relacionadas à implementação da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE), ou seja, ao acionamento efetivo de todas as instâncias do poder público em favor do desenvolvimento industrial autônomo do país. “Quanto a salvaguardas e linhas de financiamento para o setor privado investir no projeto, acho que depender unicamente desse raciocínio pode ser perigoso”, adverte Pedro Palmeira. “Estamos falando em algo para ser construído em equipe. Deve haver uma iniciativa forte amarrando a demanda desde o início, sem voluntarismo, garantida em contrato, com todas as multas e penalidades caso este seja descumprido.” Em resumo, o BNDES quer sinais mais claros de que não enfrentará sozinho o ônus de apoiar financeiramente o empreendimento. “Esse projeto só vai se viabilizar se a iniciativa privada e os atores de governo envolvidos, a Petrobras e o BNDES, trabalharem em conjunto. O financiamento é uma garantia, mas é preciso que o banco veja que o projeto é viável para depois não ter que explicar à sociedade que o dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador foi usado em um projeto que não deu certo.”

Farmanguinhos: poder de compra em ação

De fato, no segmento de fármacos o poder de compra do Estado é o elo econômico que falta para viabilizar o projeto. Mas, ao que tudo indica, estamos muito próximos dessa meta. O Ministério da Saúde tem sido firme na sua nova orientação de priorizar a produção local dos fármacos destinados a seus programas e o laboratório público Farmanguinhos desenvolve, em caráter pioneiro, uma experiência de parceria com indústrias desse segmento instaladas no país.

A mudança de postura do poder público veio em boa hora, pois a dependência brasileira de importações no segmento de fármacos é dramática, como destaca David Tabak, consultor da Coordenação de Assuntos Estratégicos e líder do projeto do pólo de intermediários do Comperj no laboratório Farmanguinhos. Em 2006, o mercado brasileiro de medicamentos movimentou US$ 10,9 bilhões e apresentou um déficit na balança de pagamentos de US$ 2,2 bilhões, enquanto o mercado de defensivos movimentou US$ 3,9 bilhões, com déficit de U$1,3 bilhão.

No setor de medicamentos, esclarece Tabak, os fármacos responderam pela metade do déficit – ou seja, U$1,1 bilhão. Entre 2005 e 2006 as importações de fármacos cresceram 2,2%, ao passo que a importação de medicamentos prontos cresceu mais de 20%. “Isso mostra que nossa indústria farmoquímica está tão para baixo que o setor farmacêutico tem preferido importar o medicamento pronto. Hoje em dia podemos dizer que, se as fronteiras do Brasil fossem fechadas a qualquer tipo de comércio, o Brasil poderia ser capaz de sobreviver em qualquer área, menos na área de medicamentos.”

No entanto, segundo o consultor de Farmanguinhos, a configuração atual do projeto de intermediários de síntese do Comperj beneficia muito mais a área de agroquímicos do que a de fármacos. “De acordo com as condições estabelecidas, a cadeia produtiva prevista chega muito mais perto da área de agroquímicos”, explica. “Na área de fármacos teríamos que ter a indústria privada construindo um elo para cumprir uma etapa que não está contemplada. Esse elo também se faz necessário na indústria de agroquímicos, mas é mais curto.”

Tabak tem consciência de que a refinaria não poderia avançar mais na cadeia de fármacos porque essas outras etapas não fazem parte do foco da Petrobras. Admite, também, que a otimização da escala industrial é uma questão-chave para a viabilização econômica do empreendimento. “É importante não apenas que os intermediários sirvam para a produção de fármacos e de agroquímicos. Por exemplo, os produtos previstos no projeto são largamente utilizados pela indústria de corantes também, e o fato de outras indústrias poderem ser atendidas ajuda a viabilizá-lo como um todo.”

Do ponto de vista específico da produção de intermediários para a indústria farmoquímica, o consultor de Farmanguinhos entende que a garantia de compras públicas é indispensável para motivar a iniciativa privada: “É preciso convencê-la de que o produto do seu investimento vai ser competitivo, e nesse sentido o poder de compra do Estado atua como catalisador do desenvolvimento nacional.” O secretário do MDIC, Francelino Grando, reforça essa perspectiva, afirmando que “o exercício claro, consistente e consciente do poder de compra do Estado é a diferença que ainda falta acontecer. Parece-me que essa será a garantia suficiente para demonstrar que há uma mudança da posição estratégica do setor de fármacos dentro da economia brasileira”.

Setor privado: as lições da globalização

As empresas nacionais de química fina sabem que o projeto de produção de intermediários de síntese no Comperj não pode ser analisado apenas do ponto de vista dos interesses domésticos. É preciso uma visão mais abrangente, que oriente as diretrizes do empreendimento segundo a realidade da concorrência internacional, as barreiras e as oportunidades que se apresentam para os novos players e também, é claro, as vantagens e desvantagens comparativas do Brasil nesse contexto.

Segundo Edson Lima, diretor de Farmoquímica do laboratório Cristália, a indústria farmoquímica consome mais de 60% da produção mundial de intermediários de síntese para a química fina, sendo o restante dividido entre agroquímicos, corantes, essências e outras especialidades. Ele mostra que a Índia e a China perceberam as oportunidades desse mercado e traçaram estratégias para inserir-se nele. “Ao longo das últimas décadas, as maiores empresas de intermediários químicos foram gradualmente migrando para esses países, atraídas principalmente pelos baixos custos de produção, e com isso o setor floresceu tanto na Índia quanto na China.” Atualmente, grande parte dos insumos farmacêuticos ativos (IFAs) e intermediários são produzidos por empresas chinesas e indianas, que, segundo Lima, agora estão globalizando suas operações através da aquisição de empresas européias e norte-americanas.

Mesmo o Brasil não tendo seguido essa estratégia, para o diretor da Cristália não podemos esquecer o trunfo que o nosso mercado doméstico representa. “É importante lembrar que o Brasil importa cerca de 80% dos IFAs que consome, ou seja, a indústria farmacêutica nacional é essencialmente importadora. Portanto, na cadeia produtiva farmacêutica, há mercado para produtores locais de IFAs ou intermediários, e certamente não faltariam interlocutores interessados em desenvolver parcerias em projetos nessas linhas.”

A importância de considerar um contexto competitivo mais amplo também é destacada, e com muita ênfase, pelo superintendente da Globe Química, Jean Peter. Ele defende que o conjunto de intermediários de síntese a ser produzido pelo Comperj tenha grande escala industrial e atenda não somente à indústria farmacêutica, mas também a outros setores. Em sua opinião, o pólo deve se tornar um centro “agregador de muitas empresas de médio e pequeno portes, o que é uma característica da indústria de intermediários. Esse empreendimento seria um grande fomentador de tecnologia, de desenvolvimento e dos talentos existentes no Brasil que foram dispersos ao longo do tempo”.

Do ponto de vista estritamente comercial, o superintendente da Globe explica que o que interessa à indústria farmoquímica é ter os intermediários de elaboração inicial acessíveis, pois “quando eles se tornam muito elaborados, o custo aumenta”. Além disso, Peter não acredita que as condições do mercado doméstico por si só serão suficientes. “Esse projeto deve ser pensado em termos de escala mundial, caso contrário o país terá plantas ineficientes e de baixa escala”, adverte. Por outro lado, ele reconhece que a vulnerabilidade da indústria farmoquímica nacional e sua atual dependência dos produtos importados não são problemas de ordem meramente econômica: “Reverter esse quadro é uma decisão que deve ser de natureza política.”

O importante, para Jean Peter, é saber articular adequadamente as políticas de interesse público com as forças econômicas. “O setor privado deve contar com uma estrutura de incentivos e, principalmente, deve desenvolver um portfolio de produtos para que o país possa competir internacionalmente.” Ele acredita que o momento é propício para o governo brasileiro investir no segmento, pois o mercado de intermediários químicos está se aquecendo. “A Ásia continua crescendo e se tornando consumidora dos seus próprios produtos. Por outro lado, a pressão ambiental está aumentando por lá, o que levou muitas empresas de má qualidade do continente a fecharem as portas. Em médio prazo haverá falta desses produtos no mundo e logo teremos espaço para novas indústrias desse setor”.

O Brasil chegou a tentar, no passado, uma experiência de produção de intermediários para a química fina, mas foi justamente o erro de apostar todas as fichas do mercado doméstico que levou o projeto ao fracasso. Quem relata esse caso é Marcus Pacheco, diretor comercial da Globe: “na década de 80, a Norquisa estava sendo preparada para produzir intermediários um pouco mais sofisticados, mas não deu certo porque não pensaram no mercado global, só no interno, e os produtos ficaram muito caros. Por exemplo, a empresa produzia 33 toneladas/ano de uma matéria-prima para a indústria de corantes, enquanto a concorrente indiana produzia 1.000 toneladas/ano. Com isso, houve perda de competitividade e a Norquisa foi se desgastando até desaparecer.”

Fazendo coro com os demais empresários e executivos da química fina, Pacheco afirma que “depois, com a abertura do mercado no Brasil, ficou praticamente impossível competir com chineses e indianos”. Por isto, ele também defende que a escala de produção do Comperj deve ser globalizada, “pensando nos mercados de exportação não só em termos de América Latina, mas sim num mercado global, como a China e a Índia fizeram”.

O desafio das alianças estratégicas

Para o setor agroquímico o que mais interessa, em se tratando de intermediários de síntese, não é exatamente o fim da dependência de insumos importados, mas sim a criação de alternativas nacionais comercialmente competitivas. Segundo Jorge Viecelli, diretor industrial da Milênia, substituir importações teria algumas vantagens “desde que, logicamente, os produtos tivessem aquilo que nós chamamos de competitividade em preço, qualidade, entregas nos prazos estabelecidos, enfim, todos os aspectos relativos ao fornecimento de produtos dessa natureza”. Se forem preenchidos esses requisitos, Viecelli garante que a Milênia poderá se interessar em desenvolver projetos conjuntos com a Petrobras/Petroquisa.

“Se tivermos uma indústria localizada no Brasil que seja produtora mas também tenha disponibilidade para pesquisar, desenvolver rotas novas, melhorar rotas de síntese ou de desenvolvimento de intermediários, isso é muito interessante”, afirma Viecelli. Em sua opinião, faz diferença interagir com parceiros que tenham proximidade geográfica, comuniquem-se no mesmo idioma e partilhem a mesma legislação. “Isso tudo facilita muito o desenvolvimento de novos produtos, agregando um valor importante à indústria”.

Pensar globalmente, agir localmente – esta máxima da economia global faz sentido para o diretor da Milênia. “O Brasil precisaria ter, não digo autonomia, porque nenhum país tem isso necessariamente, mas é importante ter as competências para produzir e, conforme as estratégias e as demandas locais, ter capacidade de atender. Logicamente isso dá maior segurança às empresas que têm fábricas no País; dá maior possibilidade de enfrentar crises de abastecimento e outros eventuais problemas que aconteçam no mercado mundial”.

Quando uma indústria importa insumos, explica Viecelli, tem que montar uma estrutura para isso: antecipar compras, estocar para não faltar etc. Por outro lado, quando se tem uma produção local programada, a entrega é mais rápida. “Por exemplo, no Brasil nós enfrentamos sistematicamente greves portuárias, com dano muito significativo para a indústria”, esclarece o diretor da Milênia. Comprando no País a empresa fica menos suscetível a estes problemas, além de “evitar futuros sustos nas questões cambiais. São possibilidades que eu vejo como muito interessantes para o nosso segmento”.

A proximidade geográfica proporciona às empresas um acompanhamento menos oneroso e mais sistemático das atividades dos fornecedores, acrescenta Viecelli. “Na cadeia de produção de agroquímicos, por exemplo, é possível gerar além do produto que a empresa deseja algumas impurezas que não interessam. Se o cliente está por perto e conhece todo o processo produtivo, logicamente ele tem mais condições de garantir a qualidade dos insumos que adquire”.

No que diz respeito ao Comperj, Viecelli ressalta um aspecto importante envolvendo a relação entre os mercados agroquímico e farmoquímico como consumidores de intermediários de síntese. “O setor de agroquímicos consome um volume de produtos expressivo, que dá escala econômica e com isso pode viabilizar pequenas unidades para fármacos. Quando se tem um grande volume de demanda, em escala que interessa a um determinado setor da petroquímica, pode ser que os demais produtos possam ir para a produção de fármacos com outras características em termos de produção, não tanto em volume mas em maior valor agregado”.

O empresário e professor de Engenharia Química Alberto Ramy Mansur, diretor presidente da Nortec Química S/A, também analisa o Comperj do ponto de vista das sinergias e alianças estratégicas que ele poderá gerar, comparando o projeto com iniciativas semelhantes empreendidas no mercado internacional. Ele considera particularmente interessante os exemplos da BASF, da Bayer, dos franceses Elf/Total, conglomerados europeus que promovem uma estreita integração entre os negócios do petróleo, petroquímica e “Life Science” – segmento industrial destinado à fabricação de moléculas biologicamente ativas que se destinam, especialmente, ao consumo humano, através de produtos farmoquímicos e agroquímicos.

Por razões estratégicas, as empresas petrolíferas francesas Total e Elf adquiriram o controle acionário da Sanofi Aventis, que está entre os cinco maiores laboratórios farmacêuticos do mundo, relata Mansur. “Ao mesmo tempo, a Total é presença freqüente nas reuniões da Organização Mundial de Saúde, oferecendo  recursos financeiros ‘a fundo perdido’ e expertise tecnológica. Recentemente aliou-se a Nortec para elaborar a engenharia básica para construção de plantas de anti-retrovirais em países africanos como a Argélia, onde explora petróleo e gás”.

Mansur revela que a Total ofereceu parceria à Nortec para a produção de anti-retrovirais em Angola, limitando-se para a empresa 100% brasileira (com participação do BNDES) a transferir os “dados básicos” de correlações de processo (tecnologia de processo) ao projeto na África. À Total caberia um aporte de US$ 20 milhões, sem retorno, através da Fundação Clinton e da OMS.

Essas recentes parcerias estratégicas têm como pano de fundo, segundo o presidente da Nortec, mais uma vez a concorrência da Índia e da China. “O risco de concentrar a produção de insumos farmacêuticos na China, onde há seis mil produtores, e na Índia, que conta com três mil, tem sido o maior temor do Ocidente, inclusive para nós da América Latina, por representar uma ameaça ao equilíbrio mundial entre oferta e demanda no suprimento de fármacos e de agroquímicos”, alerta Mansur. Esse risco para a indústria de fármacos e para agroindústria seria similar ao da concentração do petróleo/petroquímica no Oriente Médio.

Os grandes players mundiais estão apreensivos. Não é outra a razão, segundo o presidente da Nortec, por que a Alemanha tem tomado providências para não permitir a desativação de sua produção local de intermediários de síntese nas plantas da Basf, Bayer e Clariant. Na opinião de Mansur, a Alemanha e a França são os países que, por terem equacionado da maneira mais inteligente a manutenção de suas cadeias produtivas de medicamentos e agroquímicos, podem servir de modelo ao projeto do Comperj.

Mostrando que a indústria nacional aprendeu com as lições do passado, Alberto Mansur explica que, tecnicamente, a produção integrada no Comperj abrangendo desde o petróleo até os Intermediários de Síntese e consolidada dentro do mesmo esquema acionário, possibilitaria a prática de preços/custos de transferência interna de insumos “intra-unidades de processamentos químicos”. O esquema integrado faria superar, em sua opinião, “modelos antigos de projetos de química fina implantados no Nordeste e no Sudeste que vendiam insumos da empresa A para a empresa B; de B para C etc, gerando a necessidade de ‘lucros e perdas’ em diferentes e separadas empresas e estruturas acionárias (que na verdade eram várias unidades produtivas não integradas)”.

Sem esse esquema integrado que permitirá a produção dos Intermediários de Síntese destinados à fabricação de fármacos essenciais para os programas públicos de saúde, segundo Mansur o SUS fica inviável, do ponto de vista de estar alicerçado na produção integrada no Brasil, de insumos farmacêuticos ativos para abastecer o programa de saúde pública, conforme entendimento e leitura do PAC da Saúde. Para ilustrar o quadro insustentável da dependência externa, o presidente da Nortec cita o exemplo dos anestésicos locais usados pelos dentistas e em emergências de prontos-socorros e ambulatórios: “a 2,6 xilidina – matéria-prima para a lidocaína/xilocaína – que há três anos custava US$ 2,50/kg, hoje nos custa US$ 13 a 15/kg. Isto acontece em conseqüência da concentração da produção na Índia, e principalmente na China, provavelmente a partir do meta-xileno. Vejam bem, a opção do Comperj seria vender m-xileno para solventes!”

Como se vê, é extremamente complexo o conjunto de escolhas a serem feitas na concepção do pólo de intermediários de síntese do Comperj para que esse grande empreendimento tenha impacto efetivo no setor de química fina. O fato é que, seja de maneira direta, mediante financiamento e uso do poder de compra do Estado; ou indireta, através do agenciamento da demanda do setor agroquímico e outros para dar escala comercial à produção de intermediários para o setor de fármacos, finalmente o governo parece determinado a priorizar, como manda a PITCE, a formação de uma cadeia produtiva nacional para a produção de fármacos e medicamentos. A população brasileira agradece.

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