REVISTA FACTO
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Jan-Fev 2007 • ANO I • ISSN 2623-1177
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//Artigo

Medicamentos essenciais e licenças governamentais

Cenário atual, dificuldades enfrentadas, problemas da saúde pública.

O conceito de medicamento essencial não é novo: ele foi criado na Organização Mundial de Saúde (OMS) na segunda metade da década de 70 para designar o conjunto mínimo de drogas que atenderia as necessidades de saúde da maioria da população de um país e que, portanto, deveriam estar disponíveis a todo tempo, nas quantidades, formas de administração e dosagem adequadas e, especialmente, a preços que a população do país pudesse pagar.

A OMS preparou uma lista padrão de tais medicamentos e desenvolveu uma metodologia para que cada país preparasse a sua, pois embora haja grupos de países com padrões de morbidade semelhantes devido à sua localização geográfica, níveis de desenvolvimento, perfil demográfico etc., é certo que uma única lista mundial não deveria dar conta adequadamente do caráter de essencialidade de cada medicamento nas condições de cada país. A lista da OMS é revisada periodicamente e sua última edição inclui mais de 300 medicamentos.

A questão da disponibilidade de medicamentos essenciais no mundo tem sido objeto de muita análise e debate, sobretudo depois da disseminação mundial do vírus da Aids. O que chama mais a atenção é que a OMS estima que, ainda hoje, pelo menos um terço da população do mundo não tem acesso aos medicamentos de que precisa, ou seja, milhões de pessoas, crianças em primeiro lugar, morrem no mundo a cada ano de doenças já triviais para as quais métodos terapêuticos são bem conhecidos. O que é mais trágico é que este enorme contingente de deserdados não está distribuído uniformemente, mas concentrado nos países mais pobres da África, Ásia e América Latina.

Desde que os medicamentos existem, são conhecidos e sabese como fabricá-los, qual a razão para que eles não cheguem a quem precisa? Quatro fatores principais têm sido geralmente apontados: preços, níveis de renda, níveis de educação sanitária e incoerência de políticas governamentais.

É claro que a disponibilidade dos medicamentos essenciais, por si só, não dá conta dos problemas de saúde da população de um país. É preciso vigilância epidemiológica, educação sanitária, supervisão ao longo do tratamento para conseguir o efeito terapêutico desejado, enfim, uma razoável estrutura de cuidados à saúde, mas se a disponibilidade de medicamentos não é condição suficiente, ela é sem dúvida necessária.

A indisponibilidade de medicamentos essenciais para largas fatias da população mundial está diretamente ligada à questão dos preços: não há recursos pra pagar os altos preços cobrados por certos medicamentos – especialmente os cobertos por patentes – situação que se agravou depois da adoção do Acordo ADPIC (TRIPS) pela Organização Mundial de Comércio (OMC), em 1995, data a partir da qual todos os países que fazem parte da OMC foram paulatinamente obrigados a reconhecer a existência de proteção patentária sobre medicamentos.

Já se argumentou que patente não é a causa do problema da escassez, pois da lista de mais de 300 medicamentos essenciais da OMS, menos de 20 estão cobertos por patentes. O argumento é interessante, mas um tanto falacioso quando generalizado. Os essenciais cobertos por patente da lista da OMS são, em sua maioria, destinados à terapia da Aids e, portanto países que tenham uma morbidade elevada em Aids – a África do Sul tem quase 20% de sua população adulta infectada, por exemplo – precisarão gastar uma fatia considerável de seus recursos para a aquisição de apenas um pequeno número de medicamentos. Este é o caso da maioria dos países da África sub-saariana, da Ásia… e do Brasil também.

O Brasil tem, há anos, uma política de saúde bem estabelecida, com vigilância epidemiológica e uma razoável rede de atendimento além de uma política de distribuição gratuita de medicamentos às frações carentes de sua população. Foi o primeiro país em desenvolvimento a estabelecer uma exitosa política de prevenção e combate à Aids, inclusive através da distribuição gratuita de medicamentos, o que resultou numa queda drástica dos níveis de morbidade e mortalidade. Hoje, apenas 0,6% da população adulta brasileira está contaminada, nível equivalente ao dos EUA, por exemplo. Toda esta política está ameaçada pelos altos preços dos novos anti-retrovirais – cuja introdução nos programas de tratamento é essencial para os pacientes mais antigos – todos eles cobertos por patentes e comercializados a preços de monopólio.

Diga-se, a bem da verdade, que não são os preços dos medicamentos o vilão exclusivo da história. Há incoerências na política governamental brasileira que afetam a questão da saúde. Tais incoerências se situam na fronteira que liga a política de medicamentos à política de desenvolvimento industrial, e envolve diretamente a questão da propriedade intelectual e das patentes de invenção, além das questões relativas à produção própria e a aquisição, de medicamentos e fármacos.

O Brasil, além de ter um bom conjunto de laboratórios farmacêuticos privados, instituiu uma rede de laboratórios oficiais, em níveis federal e estadual, com capacidade para a produção dos medicamentos essenciais que distribui gratuitamente à população, mas… esqueceu dos fármacos. Uma política industrial liberalizante, adotada ao longo dos anos 90, massacrou o nascente parque brasileiro de produção de fármacos e o resultado é uma necessidade exagerada de importações e uma freada brusca no nosso processo de capacitação industrial na área químicofarmacêutica. Some-se a isto uma prática equivocada na sistemática das aquisições de insumos por parte do governo e os preços crescentes dos fármacos sob patentes e teremos a exata dimensão do problema: não vai haver recursos para manutenção adequada dos programas governamentais de saúde.

Soluções? Há. O governo não precisa pagar os elevados preços dos fármacos sob patente para fabricar em seus laboratórios os medicamentos que distribui à população carente. Pode fabricá-los, diretamente ou usando a capacitação de terceiros, utilizando-se do mecanismo das licenças para uso governamental. As indústrias químicas brasileiras produtoras de fármacos ainda guardam uma razoável capacitação e a que faltar pode ser suprida por investimentos feitos com os mecanismos de apoio previstos na PITCE.

Licenças para uso governamental não são novidade e nem mesmo raridade na comunidade internacional e seu uso já acumula razoável experiência. A racionalidade é clara: o privilégio da patente é concedido ao inventor para que a população do país que concedeu o privilégio se beneficie da invenção. Ora, se o governo precisa usar a invenção para atender a uma necessidade de seu povo não há porque impedi-lo. Basta recompensar o inventor pelo uso de sua invenção e pronto.

É o que os EUA, por exemplo, fazem extensivamente. A lei americana – Seção 28 do United States Code, Parágrafo 1.498 – é bastante clara e a jurisprudência é farta. Um funcionário do governo americano pode autorizar o uso de uma patente para fins de governo, bastando apenas notificar o beneficiário do privilégio e estabelecer uma compensação financeira pelo uso. Não pode haver recurso legal contra o ato governamental: o beneficiário pode apenas reclamar judicialmente da compensação financeira estabelecida. Os EUA usam amplamente este recurso na esfera da defesa, usaram muito para acelerar os trabalhos da NASA quando da corrida espacial e o campo da saúde não ficou de fora, basta recordar os casos do Meprobamato, do Anthrax e do Tamiflu.

Mas não são só os EUA que legalizaram e usam este recurso, o Reino Unido não fica atrás. O art. 55 da lei inglesa versa sobre “uso de invenções patenteadas para serviços da Coroa” e seus dispositivos são semelhantes aos da lei americana no estabelecimento do direito automático de uso por parte do governo ou de uma terceira parte por ela contratada ou autorizada.

A lei de PI da Índia não é menos clara. Reza no seu artigo 100: ” …o Governo Central e qualquer pessoa por ele autorizada por escrito pode usar uma invenção patenteada, para fins de governo, de acordo com as disposições deste Capítulo”. A contrapartida é a usual: uma compensação financeira pelo uso.

Canada, Seção 19, Austrália, Capítulo 17, Espanha, Irlanda, Malásia, China, a lista dos países que têm tal dispositivo em suas leis é grande e variada. Os dispositivos não são totalmente uniformes, a maneira de compensar pode ser divergente, mas o substrato é comum: o governo pode dispor de qualquer patente concedida em seu território, desde que seja para uso governamental e mediante uma compensação ao inventor.

Se o presidente Lula está realmente empenhado em atender as necessidades de saúde do povo brasileiro, uma pequena mudança na lei brasileira de PI pode dar uma grande ajuda. Adotando explicitamente o mecanismo das licenças governamentais o Brasil estará na boa companhia de dezenas de outros países, basta que aplique o mecanismo com prudência e sabedoria, somente nos casos em que o interesse nacional esteja claramente em jogo, pois trata-se de aplicar judiciosamente as razões que fundamentam a existência do sistema de patentes e não de desacreditá-lo ou inviabilizá-lo.

De quebra, ganha-se a oportunidade de colocar de vez a PITCE para funcionar em uma das áreas que ela selecionou como prioritárias, a químico-farmacêutica. Duas ou três plantas novas para a o desenvolvimento de fármacos seriam muito bem-vindas. Elas poderiam ser construídas com recursos a fundo perdido, geridas pela iniciativa privada em cooperação com o pessoal qualificado em pesquisa farmoquímica existente nas nossas universidades e centros de pesquisa e se encarregariam de preencher as lacunas porventura existentes no domínio das tecnologias de fabricação dos produtos de interesse dos programas governamentais de saúde.

Marcos Oliveira
Marcos Oliveira
Membro do Conselho Consultivo da ABIFINA.
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