REVISTA FACTO
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Nov-Dez 2006 • ANO I • ISSN 2623-1177
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//Matérias

Políticas de propriedade intelectual no Brasil: análise comparativa entre saúde e agricultura

A reforma da legislação brasileira relativa à propriedade intelectual, realizada na segunda metade dos anos 1990 como decorrência da assinatura, pelo País, do Acordo TRIPS, ensejou oportunidades e constrangimentos. As oportunidades estão diretamente associadas à capacidade científica e tecnológica nacional para gerar novo e útil conhecimento passível de proteção e para utilizar as informações relativas às invenções que são objeto da proteção. Já o nível de ajuste da legislação anterior, assim como os possíveis constrangimentos para empresas que se beneficiavam dos antigos estatutos, dependem do setor e do tipo de proteção existente. No caso das patentes, por exemplo, as mudanças foram significativas, e implicaram alterações na estrutura competitiva da indústria farmacêutica, especialmente.

A reforma da legislação brasileira relativa à propriedade intelectual, realizada na segunda metade dos anos 1990 como decorrência da assinatura, pelo País, do Acordo TRIPS, ensejou oportunidades e constrangimentos. As oportunidades estão diretamente associadas à capacidade científica e tecnológica nacional para gerar novo e útil conhecimento passível de proteção e para utilizar as informações relativas às invenções que são objeto da proteção. Já o nível de ajuste da legislação anterior, assim como os possíveis constrangimentos para empresas que se beneficiavam dos antigos estatutos, dependem do setor e do tipo de proteção existente. No caso das patentes, por exemplo, as mudanças foram significativas, e implicaram alterações na estrutura competitiva da indústria farmacêutica, especialmente.

O Brasil apresenta dois exemplos marcantes de política de propriedade intelectual aplicada em áreas específicas: a atuação da Embrapa no mercado de sementes e da Fiocruz na polêmica que envolveu o coquetel de medicamentos do programa de fornecimento de medicamentos anti-retrovirais do Ministério da Saúde. No primeiro caso, a partir de uma política de propriedade intelectual na área de cultivares, a Embrapa articulou uma rede de parceiros, públicos e privados, objetivando o desenvolvimento de novas variedades de plantas, cujo sucesso possibilitou manter majoritária a presença de cultivares nacionais após a promulgação da Lei de Proteção de Cultivares, em 1997. A Fiocruz, por intermédio da sua unidade de produção de fármacos, Far-Manguinhos, tornou disponível para o Ministério da Saúde a estrutura de custos dos remédios que compunham o coquetel de medicamentos anti-retrovirais, identificando a tecnologia necessária à sua produção.

Tanto no caso da Fiocruz como no da Embrapa, observou-se um novo padrão de organização de pesquisa: a busca por parcerias privadas e o compartilhamento de resultados proprietários. Concorre para tanto a busca de complementaridade de competências que, de maneira alguma, estariam alocadas em uma única instituição de pesquisa ou agente econômico de capital nacional.

No contexto do mercado de sementes do Brasil, a expectativa em relação à implantação da Lei de Proteção de Cultivares era de que seu impacto seria diferenciado segundo o dinamismo das culturas e os condicionantes técnicos e científicos envolvidos no desenvolvimento de novas variedades. Esperava-se ainda que o licenciamento seletivo de variedades por parte do setor público viesse a apoiar a manutenção competitiva de empresas sementeiras nacionais de pequeno e médio portes sem condições de desenvolver programas próprios de melhoramento no disputado mercado de sementes. A capacitação técnica e científica do setor público brasileiro, assim como suas articulações com as associações e cooperativas de produtores, o credenciavam a manter sua capacidade de lançamento de novas cultivares. De fato, o processo de privatização e desnacionalização do setor sementeiro, embora tenha ocorrido em algumas frentes, não foi generalizado até 2003. Ao contrário, a presença nacional continua marcante e expressiva, ainda que o tempo transcorrido desde a aprovação da Lei de Cultivares em 1998 seja curto para afirmações peremptórias sobre cenários futuros.

A participação do setor público no mercado de sementes, no entanto, não deve ser entendida como resultado somente da capacitação técnica e científica alcançada pela pesquisa agrícola no País, mas também como decorrência de estratégias de articulação de parcerias e de um processo de reorganização da própria pesquisa pública em melhoramento vegetal. Para tanto, concorreu também a capacitação no manejo dos mecanismos de proteção à propriedade intelectual – capacitação esta alcançada antes mesmo da LPC ser implantada no Brasil. A experiência da Embrapa na articulação de uma associação (Unimilho) que reunia empresas sementeiras de atuação local e regional com o objetivo de comercializar híbridos de milho desenvolvidos pela empresa pode ser entendida como a base sobre a qual se assentou essa capacitação para combinar geração de conhecimento tecnológico e sua difusão controlada no mercado.

No segmento de soja, uma análise dos impactos da Lei de Proteção de Cultivares mostra que a mudança no quadro institucional derivada do reconhecimento de direitos do obtentor provocou uma forte reestruturação do mercado. O primeiro ponto que chama a atenção é a redução da participação das empresas nacionais. Igualmente ampliou-se a participação de empresas multinacionais. Esses são movimentos articulados, na medida em que a redução de uma e a ampliação de outra foram decorrência, principalmente, da compra do programa de soja da FT Sementes pela Monsanto, que resultou na formação da Monsoy.

Por outro lado, há uma redefinição do espaço de intervenção pública, por meio das estruturas oficiais de pesquisa. Essa redefinição não implicou perda de importância da pesquisa pública, mas levou a uma nova forma de atuação. As articulações com parceiros tradicionais públicos, que se formaram a partir dos anos 1970, passaram a ganhar uma mediação, que são as fundações, incisivamente presentes no segmento de soja. Essa articulação é responsável pela ampliação da participação da Embrapa na quantidade de cultivares utilizadas como sementes na safra 2000/2001 em pouco mais de 50%, em relação à participação individual da instituição federal. Desse ponto de vista, o impacto da Lei de Proteção de Cultivares pode ser entendido como altamente positivo.

Tal como o mercado de sementes, o de medicamentos também foi largamente afetado pela entrada em vigor do Acordo TRIPS no Brasil. Até então o País não reconhecia direitos de propriedade industrial sob a forma de patentes em medicamentos para produtos (desde 1945) e para processos (desde 1969). Desse ângulo, poder-se-ia até considerar a situação como análoga à do mercado de sementes. Todavia, há distinções relativas à dinâmica concorrencial, à importância da presença de empresas transnacionais no mercado brasileiro, ao papel do Estado na P&D, à peculiaridade das atividades de P&D (não) desenvolvidas pelas empresas nacionais, e, particularmente, ao fato de que o processo de adaptação dos medicamentos ao mercado nacional não implica necessidade das empresas transnacionais manterem no País estruturas próprias – ou em associação com instituições brasileiras – de pesquisa e desenvolvimento de produtos e processos. Assim, o desenho de políticas públicas voltadas para o setor tende a se diferenciar daquele relacionado ao mercado de sementes.

Duas vertentes de política de propriedade  ntelectual em saúde foram estabelecidas: uma referente à política de tratamento universal de portadores do vírus HIV e outra relativa à criação de um mercado nacional de medicamentos genéricos. A decisão de garantia de acesso universal a todos os pacientes soropositivos ocorreu em 1996 (cabe lembrar que é o mesmo ano em que foi promulgada a nova legislação relativa à propriedade industrial no Brasil). A legislação pertinente estabelecia que, para a viabilidade e concretização do programa, deveria ser seguida uma estratégia de redução de custos. Porém, algumas dificuldades se impunham àquela época. Uma delas dizia respeito às restrições derivadas do Acordo TRIPS, outra se relacionava à exigência de licitações internacionais, que constava da legislação brasileira desde 1993. Esses impedimentos, somados ao baixo incentivo propiciado à indústria farmacêutica nacional, ocasionaram a necessidade de importação de princípios ativos de países que, diferentemente do Brasil, tinham tanto utilizado as flexibilidades do TRIPS quanto incentivado sua indústria farmacêutica, tais como a China e a Índia. A forma de superar tais constrangimentos foi fazer com que as novas drogas que viessem a compor o grupo de medicamentos a ser ministrado aos pacientes e que estivessem sob proteção intelectual fossem objeto de negociação direta do governo com os seus titulares (na qual o licenciamento compulsório era uma possibilidade concreta) e as que estivessem em domínio público fossem comercializadas como genéricos.

Desde 2005, no entanto, com a plena aplicação do TRIPS na Índia, a continuidade do programa brasileiro de fornecimento universal de medicamentos antiretrovirais encontra mais uma barreira a transpor. A Índia se beneficiou com a aplicação do artigo 65 do Acordo, promovendo a cópia legal de diversas fórmulas e fortalecendo sua indústria farmoquímica. O efeito da concessão de patentes de medicamentos na Índia é uma elevação geral dos preços e um custo extra que não favorece a manutenção de um bemsucedido programa de amplo alcance social e reconhecido internacionalmente. Ao abrir mão da adesão tardia a algumas disposições do TRIPS, o Brasil ficou ainda mais vulnerável no tocante ao acesso às tecnologias de saúde. Assim, é fundamental garantir salvaguardas como a licença compulsória, que pode ajudar a viabilizar programas de cunho estratégico, promovendo o acesso a menor custo. Por outro lado, há que se ter em conta que o instrumento da licença compulsória abriga limitações, posto que requer acúmulo prévio de capacidade tecnológica e produtiva, muitas vezes com alto grau de sofisticação, como no caso de moléculas complexas. Nesse sentido, é crucial o contínuo e intenso investimento em inovação em fármacos objetivando a concretização de políticas socioeconômicas em larga escala.

No mercado de medicamentos genéricos, por outro lado, a participação da indústria farmacêutica nacional foi significativa. A política de genéricos do governo brasileiro teve como norte a ampliação do acesso aos medicamentos. Os três principais impactos esperados em relação à política de genéricos são a desconcentração da estrutura de mercado – decorrente da maior participação dos medicamentos genéricos nas vendas da indústria farmacêutica -, a redução do preço médio de venda, propiciada pela maior concorrência entre medicamentos genéricos e os de marca, assim como entre os próprios medicamentos genéricos, e o aumento das vendas de remédios, ampliando-se o acesso da população, especialmente das classes de menor poder aquisitivo.

Pode-se considerar que a política de propriedade intelectual relativa a medicamentos no Brasil hoje apresenta duas vertentes com impactos e dinâmicas muito distintas. Nas duas, a base da intervenção foi a capacitação técnica, científica e industrial nacional. No caso da distribuição de medicamentos que compõem a cesta ministrada universalmente e de modo gratuito pelo governo aos pacientes soropositivos, os laboratórios oficiais tiveram um papel preponderante, tanto em relação à capacidade de produção industrial dos medicamentos quanto em termos de regulação de preços. Qualquer política de propriedade intelectual estaria fadada ao fracasso sem essa capacidade industrial estatal, inclusive e, principalmente, sem esse poder de barganha nas negociações com o setor privado.

A política governamental de universalização de distribuição de medicamentos aos soropositivos no Brasil, no entanto, não foi capaz de articular o desenvolvimento da indústria nacional – aí entendida como o conjunto de empresas privadas de capital nacional – a partir de uma política de compras governamentais.

Por outro lado, no caso da indústria de sementes, a forma como foi negociada a legislação brasileira no contexto dos tratados internacionais (mais especificamente junto à UPOV – União Internacional para Proteção de Novas Variedades de Plantas), diferenciou-se da negociação relativa à propriedade industrial e criou condições mais favoráveis, incluindo a perspectiva de um projeto nacional para o setor. Contribuiu para tanto a articulação institucional promovida pela Embrapa, organizando parcerias voltadas para o desenvolvimento de novas variedades proprietárias e licenciando estas e outras variedades desenvolvidas individualmente pela empresa federal. Desse ponto de vista, tratar a propriedade intelectual como elemento de interação, que facilita uma invenção/inovação circular entre os diversos agentes econômicos e atores que participam do processo de inovação, é apropriado para o mercado de sementes, tanto no que diz respeito à relação público/privado quanto público/público. Dessa forma, a pesquisa pública, a empresa multinacional e a organização de produtores rurais estabelecem uma complementaridade em suas trajetórias.

Apesar das contradições da política adotada, ela foi capaz de responder aos desafios impostos pela legislação de propriedade industrial. O País conseguiu superar grande parte dos constrangimentos potenciais decorrentes da reforma institucional e, em alguns casos, aproveitou as oportunidades, investindo no desenvolvimento dos setores produtivos. Essas oportunidades, entretanto, não serão sustentáveis a longo prazo sem articulações entre as políticas industrial, de propriedade industrial e de inovação. Tais políticas necessitam estar centradas na ampliação da competência e capacitação da empresa privada nacional, na manutenção da excelência dos laboratórios estatais e, principalmente, na criação de estímulos – sejam de caráter indutivo ou impositivo – às empresas internacionais, para que estas articulem parte do seu esforço em P&D à estrutura científica e tecnológica nacional. Os instrumentos de proteção à propriedade intelectual desempenharão papel central nesse processo.

Antônio Márcio Buainain
Antônio Márcio Buainain
Doutor em Economia (Unicamp), Professor do Instituto de Economia/Unicamp.
Claudia Inês Chamas
Claudia Inês Chamas
Pesquisadora do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fiocruz e professora do Programa de Mestrado e Doutorado em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em associação com a Fiocruz.
Sergio Medeiros Paulino de Carvalho
Sergio Medeiros Paulino de Carvalho
Doutor em Política Científica e Tecnológica (Unicamp), Coordenador de Articulação do INPI.
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