REVISTA FACTO
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Jun-Jul 2006 • ANO I • ISSN 2623-1177
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//Artigo

Lições da Ásia

Na década de 60, em plena Guerra Fria, um influente geopolítico americano, o Dr. Ray Cline desenvolveu um método de análise de fatores geopolíticos mensuráveis – território, população, maritimidade, disponibilidade de recursos naturais etc. -, para tentar determinar que países do mundo poderiam vir a se tornar potências de 1ª ordem, como então eram a URSS e os EUA. O resultado da aplicação de sua metodologia de análise mostrava que apenas Brasil, China e Índia apresentavam condições estruturais capazes de alçá-los, um dia, a aquela condição. Os outros países como Canadá, Austrália, Nigéria, Indonésia e África do Sul, detentores de grandes territórios ou de grandes populações, tinham carências graves em itens importantes na metodologia de Cline e, portanto, foram descartados.

A tese, como não podia deixar de ser, provocou entusiasmo entre as elites geopolíticas. Suas conclusões embasavam perfeitamente as teses do nacional-desenvolvimentismo, então em vigor, e deram alento à formulação e implementação dos Planos Nacionais de Desenvolvimento das décadas de 60, 70 e princípios de 80.

Uma rápida comparação do estágio de desenvolvimento de Brasil, China e Índia, na década de 60, apontava para uma superioridade estratégica do Brasil. A China se defrontava com problemas sérios de segurança em seu nascente conflito ideológico com a Rússia o que a obrigava a desviar recursos para as suas forças armadas enquanto ainda lutava para homogeneizar educacionalmente o país e resolver graves problemas de necessidades básicas como alimentação, moradia e vestuário. A Índia era encarada como um país de desenvolvimento homogêneo inviável, em função de sua cultura de castas. Por mais que as elites indianas se mostrassem altamente capazes de acompanhar o avanço científico e tecnológico do mundo elas seriam numericamente reduzidas para contrabalançar o efeito de uma massa enorme de pessoas incultas e improdutivas. Além disso, a Índia tinha, a exemplo da China, problemas de segurança em suas fronteiras o que a obrigava a desviar recursos do desenvolvimento para a segurança. Restava o Brasil, um País territorial e culturalmente homogêneo, sem problemas de fronteira e que poderia dedicar todos os seus recursos à tarefa do desenvolvimento.

Passados pouco mais de quarenta anos das previsões de Cline é possível verificar que ele acertou em 67%, nada mal para previsões de longo prazo. Índia e China, sobretudo esta última, caminham aceleradamente para ocupar posições de influência global e não apenas regional, nos destinos da humanidade. O erro de sua previsão foi exatamente na aposta mais provável, o Brasil, e seria interessante tentar entender por que isto se deu.

Fenômenos sociais raramente têm uma explicação simples. Centenas de fatores, endógenos e exógenos, usualmente estão envolvidos no processo evolutivo de uma nação, mas a comparação das opções políticas adotadas por Brasil, Índia e China talvez ajude a discernir um ou dois fatores que tenham tido peso relevante nas trajetórias percorridas por eles, neste último meio século.

Para começar, o mundo do pós-guerra foi marcado por duas grandes dualidades. A primeira, Leste-Oeste, opunha os países democráticos, capitalistas, que defendiam uma economia de mercado, liderados pelos Estados Unidos, aos países socialistas, de economia centralizada, liderados pela URSS. A segunda caracterizada como Norte-Sul opunha os países industrializados do Norte, da Europa, da América do Norte e o Japão, aos países industrialmente atrasados do Sul, América Latina, África e Ásia. Esta segunda dualidade correspondia, grosso modo, à antiga divisão entre países colonizadores e países colonizados e só teve seus contornos finalmente definidos no início da década de 70, com o término de processo de descolonização mundial.

Antes de tentar entender o comportamento de Brasil, China e Índia frente a estes dualismos, é conveniente caracterizar a evolução do sistema de relações mundiais no período. Com o fim da regulação econômica e política do colonialismo, uma nova arquitetura das relações internacionais foi montada, baseada em tratados e acordos multilaterais e em organizações supranacionais que zelassem por sua implementação. Foi com esse objetivo que surgiram a ONU e o leque de suas agências especializadas – FAO, OIT, Unido, UNCTAD etc., o FMI, o Banco Mundial e o GATT, depois transformado em OMC.  As organizações mais influentes do ponto de vista econômico – GATT, FMI e Banco Mundial – ficaram desde sempre sob a liderança e controle dos países industrializados do Norte, mantendo de certa forma a estrutura da era colonial.

Em relação à dualidade Leste-Oeste, o posicionamento do Brasil foi sempre monolítico em apoio ao bloco ocidental. China e Índia, ao contrário, adotaram posturas mais flexíveis condicionando seu posicionamento político aos seus interesses de desenvolvimento. A China cedo rompeu com a ortodoxia marxista soviética e adotou caminhos próprios na aplicação prática do socialismo. A Índia flertou ora a Leste ora a Oeste ao sabor de seus interesses nacionais percebidos.

Na questão da dualidade Norte-Sul, Brasil, China e Índia pertencem ao mesmo bloco de países, o do Sul. Este bloco sempre tentou alguma forma de concertação de esforços entre si, na tentativa de alavancar o processo de desenvolvimento. Desde a conferência de Bandung, em 1957, que inúmeras tentativas foram feitas no sentido de conseguir uma atuação mais homogênea por parte dos menos desenvolvidos, com graus diferentes de sucesso, em geral baixos. Brasil, China e Índia tiveram comportamentos similares, sempre apoiando as iniciativas do Sul.

No final da década de oitenta, a derrocada da URSS acabou com a dualidade Leste-Oeste. A partir daí teve origem uma nova estrutura de poder, baseada na unipolaridade do poder americano e numa regulação mais forte das relações internacionais por meio de tratados e acordos, multilaterais, regionais e bilaterais. A nova estrutura de poder veio acompanhada de um pensamento econômico dominante, de forte cunho liberal e pró-mercado, deslocando o keynesianismo vigente até a década de 70.

Em 1989, uma receita de comportamento econômico, aviada por especialistas do Banco Mundial e do FMI e que ficou conhecida como “Consenso de Washington”, prescrevia 10 comportamentos que deveriam ser seguidos por países emergentes em sua busca pelo desenvolvimento. Eles incluíam privatização, disciplina fiscal, desregulação de mercados, abertura econômica etc. Esta lista de recomendações visava, originalmente, resolver os problemas do desenvolvimento crônico dos países da América Latina, mas tornou-se rapidamente, nas asas da mídia, uma receita para aplicação universal. De fato a receita era excelente para tornar um país atrativo para o capital externo, uma lista que qualquer banqueiro subscreveria, embora nada tivesse a ver com o desenvolvimento e o bem-estar do país que a aplicasse. No início da década de 90, com a criação da OMC em sucessão ao GATT, novas regulações internacionais foram criadas, abrangendo investimentos (TRIMS), propriedade intelectual (TRIPS), comércio de serviços, compras governamentais, entre outros aspectos da vida das nações.

O comportamento do Brasil, a partir de 1989, foi o de seguir rigidamente as orientações do Consenso de Washington e o resultado foi o estancamento de seu processo de desenvolvimento. Ao contrário, China e Índia foram os países que menos atenção deram às prescrições do Consenso, adotando um comportamento totalmente heterodoxo em relação a ele e estão crescendo, consistentemente, a taxas extremamente elevadas. Também em relação aos acordos de TRIMS, TRIPS etc. o comportamento brasileiro foi diferente dos da Índia e da China. Enquanto adotamos imediatamente todas as condições, China e Índia estenderam ao máximo o seu prazo para adesão.

O espetacular desenvolvimento da China está baseado num processo radical de inovação, em todas as áreas e em todos os sentidos: social, político, econômico, industrial, científico, tecnológico e por aí vai, associado a conceitos de estabilidade e igualdade, isto é, o processo chinês de desenvolvimento alia objetivos de crescimento econômico a objetivos de igualdade e justiça social.

A China não segue receitas rígidas e não se peja de errar. Se errar, volta atrás e corrige e por isto tantas vezes dá a impressão de dar dois passos adiante e um para trás. Adotou políticas de mercado em seu comércio internacional e práticas capitalistas para seu desenvolvimento industrial, mas não hesita em adotar medidas centralizadoras, autoritárias, socializantes se as julgar necessárias para impedir o crescimento da desigualdade e o aparecimento de tensões sociais. O que governa o comportamento chinês é uma obsessão pelo crescimento com justiça social no campo interno e pacífico, no campo internacional, um comportamento que já vem sendo apelidado de “Consenso de Pequim”, apelido cunhado por Joshua C. Ramo, em um estudo publicado em 2004, de leitura altamente recomendável.

Não há dúvida que um sem-número de razões poderiam ser arroladas para explicar a estagnação brasileira e o avanço espetacular de Índia e China, nos últimos quinze anos, mas creio que a atitude do Brasil deixando de lado seus legítimos interesses e aceitando passivamente políticas e estratégias concebidas lá fora  foi a principal delas.

É bom ficar atento às lições que vêm da Ásia.

Marcos Oliveira
Marcos Oliveira
Membro do Conselho Consultivo da ABIFINA.
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